Há inúmeras biografias de Salazar, sendo de destacar a versão académica de Filipe Ribeiro de Meneses, investigador da University of Ireland, em Galway, a versão hagiográfica de Franco Nogueira (seis volumes), e as memórias do sucessor, Marcelo Caetano. Outras, imaginamos o que dirão, como a do diplomata Bernardo Futscher Pereira, do jornalista Joaquim Vieira, ou do sempre surpreendente José António Saraiva. Para não falar em dezenas de outras, fotobiografias, e, evidentemente, os abundantes escritos do próprio.

Não li nada disto, por uma razão muito simples: vivi Salazar durante trinta anos da minha existência, e não há nada escrito que possa retratar fielmente o que era a vida no planeta que Salazar criou, por convicção ou capricho. Tenho consciência de que o “regime” (que palavra ambígua!) teve duas fases distintas: a primeira, entre 1933 e 1945, cheia de fogo-de-artifício e com um considerável apoio popular, e a segunda, entre 1946 e 1974, pesada como chumbo e com desagrado exponencialmente crescente dos governados. Embora só tenha vivido o período de decadência, conheço bem o de ascendência, através de testemunhos em primeira mão. Hoje é passado, e o passado nunca volta, quando muito copia-se, naquilo que em arquitetura se chama um pastiche. Não vale a pena chorar sobre o leite derramado; há leite fresco, a ferver, que deve merecer a nossa atenção porque determina a nossa vida agora, em tempo real.

Mas caiu-me na mão esta obra, intrigantemente chamada “O ditador que se recusa a morrer”, e tive ocasião de trocar impressões com o autor. Uma oportunidade que um português curioso não poderia perder – não para tecer comparações entre o passado e o presente, que não passam de chicana política, mas para, quiçá, saber um pouco mais sobre o que movia o homem que mandou em Portugal durante quase cinquenta anos.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

O livro lê-se bem, para quem gosta de política. O tom é cuidadosamente imparcial, quer dizer, tem o cuidado de parecer imparcial, porque de facto não é. O que interessa, nesta obra em particular, é a concordância, não com o que Salazar fez, mas com as razões que o levaram a fazê-lo. Porque o que ele fez, o Estado que ele inventou e manteve com mão firme, está publicado em todas as Histórias, e cada um será a favor ou contra conforme a sua maneira de pensar. Mas os motivos que o levaram a uma autocracia, nos tempos em que o conceito de autocracia ainda não era comum, são muito mais profundos do que a forma ditatorial que habitualmente se lhe atribui. Quer dizer, Salazar não era um ditador fascista, da mesma maneira que Mussolini, Hitler, Estaline e tantos outros. Estes fascismos são uma invenção do século XX, uma perversão do conceito da soberania do povo que nasceu na Revolução Francesa. Salazar não é do século XX; o seu mundo ideal é anterior à Revolução Francesa, quando a soberania emanava de Deus. O Governante não tem que satisfazer o povo, o Governante tem de cumprir o mandato que o Criador lhe deu.

À primeira vista isto pode parecer surreal – que uma pessoa do século XX, ainda por cima no poder, pense como se pensava no século XVIII. Mas vários autores, por sinal “de direita”, também perceberam esta incongruência. Vasco Pulido Valente, sempre cortante como uma lâmina, disse que “Salazar era o servo da Igreja” (no sentido de “servo de Deus”). Diogo Freitas do Amaral, num dos seus ensaios que li, mas cujo nome não me lembro, é taxativo: Salazar não era fascista, era pré-Revolução Francesa (1789). Porque o fascismo só foi possível duzentos anos depois, provocado simultaneamente pela deturpação maligna da democracia e pelo desenvolvimento industrial. Salazar recusava o conceito de democracia e receava o desenvolvimento industrial, fazedor dos proletários politizados que vieram substituir os crédulos camponeses.

Este fenómeno, a originalidade da autocracia salazarista, pode e deve ser estudado como o caso extraordinário que foi. As ditaduras parecem todas iguais, mas as autocracias não. E Salazar foi um autocrata diferente (do ditador Franco ou do Camarada Tito) na sua época, e ainda hoje é um autocrata original. Daí a pertinência do título: ele recusa-se a morrer, na cabeça daqueles que, tal como ele, acreditam nas virtudes do destino divino em relação à vontade rasca e desinformada das massas.

E a escolha do título não é apenas uma descoberta levemente cínica do salazarismo: é o endosso dessas ideias. Ao falar com Gallagher, percebemos que ele acha realmente que “o liberalismo exportado para toda a Europa pela França” (palavras dele, escritas e faladas) foi um recuo civilizacional. As sociedades estavam tão bem, na ordem natural das coisas, os destinados à liderança a mandar, os nascidos para ser liderados a obedecer. A política, isto é, as diferenças de opinião sobre como governar e os interesses particulares dos envolvidos, eram o exclusivo da classe dominante. Não havia política, nem era conveniente, entre os governados. Limitavam-se a gostar ou não gostar dos superiores, sem questionar sua posição, ou muito menos aspirar a ela. É o “Quem pode manda, quem deve obedece”, um dos mantras do Estado Novo. Ou outro, complementar: “A minha política é o trabalho”.

Gallagher acha que este método, de governar sem levar em conta as massas ignorantes, é o método que funciona, que o liberalismo destruiu e que Salazar restaurou. E acha, ainda, que o método não morreu, é aplicado hoje em dia por autocratas vários, e tem futuro. Talvez, finalmente, seja possível que o horrível desvio histórico do liberalismo seja erradicado.

Assumo-me estupefacto com as ideias de Tom Gallagher. É como se uma pessoa quisesse discutir se Caracala foi melhor do que Nero, ou se a Democracia grega era realmente democrática. São assuntos interessantes, do passado. No presente, não passam de temas académicos. É aquela impossibilidade temporal; o que teria acontecido se não acontecesse o que aconteceu? O facto é que aconteceu, e todas as alternativas têm de levá-lo em conta. Não se pode discutir se a Revolução Francesa foi boa ou má; aconteceu, e tudo que lhe sucede é uma consequência.

A certa altura, durante esta conversa, perguntei-lhe se Salazar não se teria enganado ao contrariar a descolonização. Como é que não percebeu que era impossível lutar sozinho contra a onda mundial da descolonização? Afinal, recordo-o, os ingleses descolonizaram logo a partir de 1947, e fizeram-no da maneira inteligente; deram independência política e mantiveram a hegemonia económica. Salazar podia ter percebido o que os velhos aliados estavam a fazer. (Ele tinha um fraco pelos ingleses, desde que não beliscassem a sua soberba soberania, acha Gallagher.)

Mas então, ele respondeu-me: o que os ingleses fizeram foi um disparate! Nunca deveriam ter descolonizado. Aliás, nem foram completamente bem-sucedidos; na Rodézia, os brancos revoltaram-se; na Índia, perderam o controle do processo e não conseguiram evitar a separação do Paquistão. Os ingleses descolonizaram porque “Churchill perdeu as eleições de 1945 e Attlee, um trabalhista, queria concentrar-se em melhorar as condições de vida dos trabalhadores”. Quer dizer, as prioridades de Attlee eram outras, sendo um socialista, logo filho do malfadado liberalismo.

Acrescenta ainda que em 1950 Salazar teve um bom momento internacional, até recebeu a Rainha Elizabeth, em 1958, e o General Eisenhower, em 1960. Lembro-me da euforia muito bem organizada dessas visitas, com as escolas mobilizadas para as criancinhas aparecerem nas ruas a agitar bandeiras. Mas, pensando no assunto, foram visitas ditadas pelo xadrez da Guerra Fria, em que de repente um “regime” conservador e anti-comunista era um peão bem colocado no tabuleiro. Aliás, Eisenhower, na mesma pernada, também visitou o proscrito caudillo Franco, porque uma base militar em Espanha dava jeito à NATO. E a Rainha Elizabeth recebeu em Londres Nicolae Ceausescu com pompa em circunstância, em 1987, e até deu um diploma académico à mulher dele, Elena, que na Roménia se fazia passar por distinta cientista. Jogos da política internacional, para impressionar as massas, mas que um académico deve compreender que têm um valor estratégico. Salazar teve uma década de sessenta difícil, com os ventos do descolonialismo a soprar com muita força – a perda da Índia, em 1961, que os ingleses se recusaram a ajudar -, as revoltas nas colónias, o caso do Santa Maria, também em 1961, as eleições que foi abrigado a fazer e que só ganhou na batota.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Uma surpresa neste livro foi o ataque forte ao caráter de Aristides de Sousa Mendes, o tão cantado salvador de judeus, que considero uma figura menor na grandeza das coisas e que não justificava um capítulo para deitar abaixo. Não sei se é verdade ou mentira, mas o caso nem sequer é característico das movimentações dentro do regime.

Mais interessante é o que Tom Gallagher escreve sobre as posições dos monárquicos, embora omita o mecanismo da vinda de Duarte Nuno para Portugal, que, na verdade, é a parte mais interessante da história. Vivia na Áustria, num palácio com estatuto de embaixada desde D. Miguel, e os nazis deram-lhe algumas horas para provar que era português, ou seria incorporado na Wehrmacht (as forças armadas da Alemanha nazi). Foi Teotónio Pereira quem convenceu Salazar a providenciar-lhe um passaporte, fazendo assim um favor aos monárquicos, o que não lhe custava nada e os mantinha na doce esperança de uma sucessão à espanhola. Mas Salazar era mesmo republicano, apesar de não fazer sentido dentro da sua visão do mundo - e isso Gallagher reconhece. Talvez lhe desagradasse a ideia de um rei que ele não poderia substituir – como teve de fazer com Craveiro Lopes – talvez achasse mesmo, como o inglês afirma, que os portugueses continuavam fortemente republicanos e não valia a pena abrir essa frente.

Uma parte interessante do livro é quando Gallagher descreve o jogo de cintura de Salazar para não se envolver na II Guerra Mundial. Mas também aqui, os factos sendo corretos e interessantes, Salazar é apresentado como um eficaz diplomata que conseguiu manter a equidistância entre as partes, o que a propaganda oficial e as senhoras das missas sempre louvaram, quando na realidade interessava aos beligerantes a neutralidade portuguesa. Toda a gente sabe que os ingleses não nos queriam na I Guerra Mundial porque tinham de sustentar logisticamente a nossa tropa, que pouco lhes adiantava; e que nós insistimos a participar para ter lugar à mesa da vitória que negociaria as colónias. Não é difícil extrapolar que a situação na II Guerra Mundial seria semelhante. Salazar sempre vendeu o precioso volfrâmio aos dois, conseguindo assim o facto único e inédito de ter um superavit, e só entregou os Açores aos americanos quando era evidente que eles iam ganhar a guerra e, se o não fizesse, invadiriam as ilhas. Gallagher dá uma preponderância aos ingleses nestas negociações que não são compatíveis com as atitudes históricas deles connosco em geral, nem as de Churchill em particular.

Mas é um facto que o homem de Santa Comba soube navegar nas águas conturbadas da II Grande Guerra, se bem que os conflitos que teve foram mais internos, entre a fação pró-alemã e a fação pró-britânica, sendo que a primeira tinha naturalmente preponderância nos altos do regime.

Outra parte que surpreende é o relacionamento entre o Estado e a Igreja Católica, através da amizade dos tempos do Seminário entre Salazar e Cerejeira. Segundo Gallagher, foi uma relação conflituosa. Segundo nós, o povinho, que víamos os dois sempre juntos nos fastos macambúzios do regime, foi uma relação íntima, se não cordial. É natural que Cerejeira quisesse conservar a independência da sua organização e lembrasse a Salazar que era ele, Cardeal Patriarca, o representante de Roma, logo de Deus na Terra; mas a identificação do Estado Novo com os princípios da Igreja Católica era total, ao ponto de um casal não se poder registar num hotel sem o respetivo Atestado de Casamento. Gallagher fala nas difíceis negociações que levaram à Concordata, mas não elabora sobre a incongruência da dita, que permitia a situação inédita em Direito Público de dois regimes de casamento; quem casasse no Registo Civil podia divorciar-se (embora os tribunais o dificultassem ao máximo), quem assinasse na Sacristia, era para sempre. Até se criou uma figura jurídica original, a Separação de Pessoas e Bens. Situações que quem só as viveu pode avaliar devidamente a interferência total da religião no Estado. As relações só se deterioraram na altura do Concílio Vaticano II, em 1961, quando a Igreja em Roma começou a andar mais depressa do que Salazar gostaria. Bem que ele se queixou, num discurso de que era um mártir, traído pela própria igreja.

Um aspeto que passa de lado, era o respeito do Estado Novo pelas classes sociais, que até se expressava na repressão política. Os operários eram muito mais mal tratados pela PIDE do que os doutores. Gallagher vai ao ponto de dizer que Henrique Galvão, condenado em Tribunal por traição, não foi maltratado na prisão, o que reflete esta espécie de “respeito” por quem é alguém, mas o inglês não admite que a diferença existia. Quando fala na repressão aos trabalhadores, inevitavelmente considerados comunistas, não se alonga muito nos maus tratos que sofreram. São uma espécie de dano colateral da política de bem-estar rústico do Estado.

A certa altura, ele cita que Salazar terá dito, ainda antes de estar no Poder, que o seu ideal seria “ser primeiro-ministro de um Rei absoluto”. Como o Marquês de Pombal. E deve ser verdade, porque o regime que ele criou era exatamente assim, mas com um Presidente da República substituível e uma Constituição de fachada.

É notório o esforço de Gallagher em retratar um país onde não viveu, independentemente do seu conceito favorável aos regimes pré-liberais (“Trono e Altar”, como se dizia). Está à vista que pesquisou muito, em fontes diversas e de todas as cores. Só que, de facto, não viveu o salazarismo. Estuda-o em pormenor como um fenómeno político, não como a carapaça social e classista que esteve alapada no poder durante tantos anos, sem que os governados pudessem exprimir o que achavam do regime.

Bem, mas ele pensa que o poder vem de Deus. Os ingleses tiveram a primeira democracia representativa, ainda antes da Revolução Francesa, mas mantendo a hierarquia social que persiste até hoje. E com um pormenor interessante: segundo se diz, Wellington, achando que o sistema deles era a razão da sua superioridade entre as nações, não queria exportá-lo. Os chatos dos franceses é que vieram estragar tudo.

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