Considerando os números, o Brasil é um país com uma importância evidente: sétimo em população, quinto em área (com 61,9% do território ocupado por floresta e 23,5% por pastagens), vigésimo em PIB, sétimo em recursos naturais e oitavo produtor de petróleo. Claro que estes valores já não são tão altos quando se afinam os critérios; por exemplo, o PIB per capita não chega a 10 mil dólares, o que o coloca em 79º lugar (Portugal está na 41ª posição). 

No entanto, os indicadores são inegáveis e, como se pode considerar, com peso muito baixo nas decisões internacionais face à dimensão do país . Isso deve-se, para abreviar uma longa história, sobretudo a factores internos; a política brasileira tem vivido embrenhada em si própria, com um sistema democrático/federal permanentemente instável, corrupto e inepto. Os Negócios Estrangeiros, que se têm mantido alheados o mais possível à confusão interna, seguem historicamente uma linha pragmática, geralmente aliada com o Ocidente, sem grandes voos de protagonismo. 

É neste cenário que o novo Presidente (novamente Presidente, seria melhor dito), com apenas três meses no cargo e sem ainda ter completado as suas propostas domésticas, resolveu mostrar ao mundo um novo Brasil, empenhado, pelo menos, em servir de referência em algumas questões mundiais (cabe aqui lembrar que Lula da Silva, nos seus dois primeiros mandatos, se preocupou sobretudo com a América do Sul e Central, apoiando os regimes de esquerda que foram aparecendo e desaparecendo).

Agora, o primeiro passo, muito bem recebido, foi assumir a responsabilidade do Estado Brasileiro pela floresta amazónica, o “pulmão do mundo”, que no mandato de Bolsonaro tinha sido devastada e os seus habitantes deixados a morrer à fome.

Na semana passada, Lula começou um périplo de visitas internacionais que incluíram, entre outros países, China, Emirados Árabes Unidos e Estados Unidos (no dia 25 de Abril estará em Portugal - já falaremos nisso). 

Na China, onde esteve dois dias e foi recebido com todas as honras, esperava-se que tratasse de assuntos exclusivamente económicos - há muito que as trocas comerciais entre os dois países são intensas e ambos consideram vantajoso ampliá-las. E, de facto, assinaram acordos no valor de mais de nove mil milhões de euros. 

Mas então, sem que ninguém lhe pedisse, Lula lançou-se em considerações sobre a invasão da Ucrânia, acusando os Estados Unidos de “encorajar a guerra” e colocando agressor e agredido no mesmo nível de responsabilidade pelo conflito. Esta postura tem sido evitada pelos chineses que, embora ajudando a Federação Russa comercialmente (não há provas de que o estejam a fazer militarmente), têm um discurso oficial mais ambíguo.

Lula da Silva disse ainda que ia sugerir aos presidentes dos EAU, Mohammed bin Zayed Al-Nahyane, e da China, Xi Jinping, a criação de um grupo de países que teriam a missão de mediar o conflito:  “O G20 (de que o Brasil faz parte) foi formado para salvar a economia [mundial], que estava em crise. Agora, é importante criar outro tipo de G20 para pôr fim a esta guerra e estabelecer a paz. Esta é a minha intenção e penso que vamos ser bem-sucedidos”.

A seguir Lula voou para os Emirados, onde, no domingo, se esticou mais um bocadinho: “A União Europeia entrou diretamente no conflito. (…) Hoje estamos a falar em dar armas à Ucrânia para atacar a Rússia ou a OTAN [NATO] colocar fronteira no território russo. Vamos encontrar países que queiram paz: o Brasil quer paz, a China quer paz, a Indonésia quer paz, a Índia quer paz. Então tenho que pedir a estes países que façam a uma proposta de paz para a Rússia e para a Ucrânia". E mais: “A guerra foi provocada por “decisões tomadas por dois países”. (...) “O Presidente Putin não está a tomar qualquer iniciativa para parar a guerra; [Volodymyr] Zelensky da Ucrânia não está a tomar qualquer iniciativa para parar a guerra. A Europa e os EUA continuam a contribuir para a continuação da guerra. Portanto, têm de se sentar à volta da mesa e dizer ‘basta'”.

A reação dos países ocidentais foi imediata, entre a surpresa e a indignação. As palavras de Lula impedem automaticamente que o Brasil possa servir de mediador duma paz, uma vez que coloca a premissa inaceitável de que os dois beligerantes são igualmente responsáveis.

No Brasil também houve surpresa e consternação. Os nossos contactos brasileiros mostraram, todos eles, à esquerda e à direita, que não compreendem esta atitude impensada, no mínimo leviana, do seu presidente, que poderia perfeitamente fazer o que fizeram vários países, como os próprios Emirados; omitir-se quanto a um assunto que não tem qualquer interesse para o Brasil.

Uma razão, sem dúvida pertinente, é o anti-americanismo de Lula, que não é diferente do anti-americanismo enraizado nos americanos do Sul e do Centro. Décadas de interferência norte-americana, tanto política (apoiando todos os regimes de mau cariz desde que fossem anti-comunistas), como económica, saqueando matérias primas ao preço da banana (“República das Bananas”, faz sentido), levaram a este sentimento. O facto de entretanto os norte-americanos terem deixado o resto do continente em paz, agora que acabou o “perigo comunista” e que surgiram outros teatros de guerra mais preocupantes, não apagou uma memória que levará gerações a esquecer. 

Mas o anti-americanismo só por si não pode justificar o apoio a uma ditadura de direita, que já nada tem a ver com a ditadura de esquerda que era a URSS. Lula da Silva, um político com longa experiência, não pode agir segundo uma percepção que já não é válida.

A opinião dos brasileiros está muito bem resumida neste vídeo do jornalista Pedro Dória. 

Na terça feira, ciente da repercussão negativa dos seus comentários, e decerto aconselhado pelo Itamaraty (o Ministério dos Negócios Estrangeiros brasileiro), Lula fez novas declarações, durante um almoço com o Presidente da Roménia, Klaus Werner Iohannis:  “Ao mesmo tempo em que meu governo condena a violação da integridade territorial da Ucrânia, defendemos uma solução política negociada para o conflito. Falei da nossa preocupação com os efeitos da guerra, que extrapolam o continente europeu”. Uma emenda que não corrige o soneto, diríamos nós.

Para piorar a situação, esta foi também a semana da visita oficial ao Brasil do ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, tendo sido recebido pelo seu homólogo. É de notar que Lula nunca sugeriu encontrar-se com Zelensky. Mas Oleg Nikolenko, porta-voz da diplomacia ucraniana, reiterou um convite já feito para que ele vá a Kiev para “compreender as reais razões” da guerra e a “essência da agressão russa”.

Finalmente, temos a visita de Lula da Silva a Portugal, onde inicialmente esteve previsto que discursasse na Assembleia da República nas cerimónias de comemoração do 25 de Abril. Como já foi noticiado, a presença do Presidente brasileiro já tinha levantado questões - esperadas - entre os extremos do hemiciclo, mesmo antes das declarações desta semana. Ficou definido, um tanto ridiculamente, que Lula irá falar, mas antes da sessão solene do 25 de Abril propriamente dita.

Agora a atitude do chefe de Estado brasileiro, mais do que o que possa dizer, levanta problemas diplomáticos. Portugal defende inequivocamente a Ucrânia e não subscreve a postura de que "ambos os lados têm culpas." Lula poderia limitar-se a platitudes do tipo “a democracia é que é bom” e “a amizade eterna dos países irmãos", mas, mesmo que se fique por aí, não é possível esquecer a sua ambiguidade das últimas semanas. Por isso foi decidido à última da hora - quinta-feira - que simplesmente não falará nesse dia, pelo menos oficial ou oficiosamente.

Foi uma boa decisão. No entanto, nada impedirá o Presidente do Brasil de fazer declarações públicas. Que dirá? Resta-nos aguardar com a cabeça fria e o coração nas mãos.

Slava Ukraini!