Através da análise de 19 impérios, o historiador britânico demonstrava que uma civilização passa por quatro períodos: nascimento, desenvolvimento, crise de crescimento, poder universal e desintegração. Ou seja, uma cultura (seja nacional, continental ou à escala mundial) não se aperfeiçoa infinitamente; a certa altura o seu próprio sucesso contém a génese da sua decadência e destruição. A evolução civilizacional não é uma recta ascendente, mas um círculo que volta ao ponto de partida.
Este aspecto da destruição vir de dentro é essencial – quando a cultura é eventualmente invadida e destruída de fora, já estava moribunda. George Orwell, que conhecemos sobretudo pela sua distopia “1984”, escreveu que a opinião pública não é naturalmente inteligente, tal como o indivíduo não é naturalmente bom. “As pessoas em grupo podem ter comportamentos irracionais, violentos e autodestrutivos, do mesmo modo que os têm individualmente. Tudo o que é preciso é um líder esperto, um demagogo que percebe os ressentimentos e os utiliza para chegar ao poder. A questão é que a liberdade relativa de que dispomos depende apenas da opinião pública.”
Nesse texto, “A liberdade em Hyde Park” (1945), continua Orwell: “A lei não serve de protecção. Os governos fazem as leis, mas o modo como são aplicadas e o comportamento das forças da ordem dependem do ambiente que existe no país. Se uma grande parte da população quiser liberdade de expressão, haverá liberdade de expressão, mesmo que a lei o proíba; mas se a opinião pública for fraca, as minorias inconvenientes serão perseguidas, mesmo que protegidas por lei.”
Considerando o destino inexorável previsto por Toynbee e a importância da opinião pública avaliada por Orwell, faz muito mais sentido a situação preocupante que se desenrola perante os nossos olhos. Uma das seguranças consideradas mais importantes para a democracia é a existência de uma Constituição – um documento gravado na pedra que só pode ser alterado por maioria absoluta ou por uma revolução. Mas as constituições são relativamente flexíveis e sem mexer numa vírgula é possível ter formas de governação mais ou menos autoritárias, desde que aceites pelos governados, ou impostas por uma série de subtis interpretações – às vezes nem tão subtis assim.
Podemos dar o exemplo da nossa Constituição de 1933 que, apesar de autoritária e não reconhecer a existência de partidos, consagrava uma escolha democrática: o Presidente era eleito por voto universal – inclusive as mulheres podiam votar – e era ele que nomeava o Governo. Como funcionava na prática, todos nós sabemos.
Outro exemplo é a Constituição da Turquia, que vem de Kemal Atatürk, em 1921, e foi alterada várias vezes, a última em 1987: é democrática, com o poder na mão da Grande Assembleia Nacional composta por eleitos em sufrágio universal. Erdogan não conseguiu mudar a limitação de mandato presidencial, mas mesmo assim acaba de dar um golpe de estado, assumindo poderes verdadeiramente ditatoriais. Sem mexer na Constituição, o futuro Califa de Ancara despediu, demitiu, prendeu e terá torturado dezenas de milhares de intelectuais e funcionários que considerou seus inimigos, tornando-se virtualmente um ditador.
O mesmo de pode dizer de Rodrigo Duterte, nas Filipinas, de Viktor Orban, na Hungria, de Nicolas Maduro, na Venezuela, ou de José Eduardo dos Santos, em Angola, Vladimir Putin da Federação Russa, ou... são tantos, que ficaria cansativo ler a lista.
O que talvez não se esperasse é que situações semelhantes ocorressem nos dois países paradigmáticos da democracia, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos.
No caso do Reino Unido, não houve qualquer alteração constitucional, até porque os ilhéus, famosamente, não têm uma Constituição. Neste caso, o que aconteceu foi a chegada ao poder da facção mais xenófoba e reaccionária do Partido Conservador, apoiada por uma maioria plebiscitária tomada dos piores sentimentos racistas e isolacionistas. Aí está, a opinião pública que Orwell anunciou. Os estrangeiros são perseguidos na rua, têm as suas casas pintadas com frases de ódio, e o Governo, dizendo-se preocupado, nada faz. A imprensa britânica, a mais facciosa e rasca do planeta, não hesita em insultar abertamente os juízes do Supremo Tribunal que se atreveram a ditar que o Brexit tem de ser validado pelo Parlamento. É verdade que há manifestações contra este estado de coisas – afinal, as liberdades continuam a existir – mas não alteraram em nada o clima autoritário que se vive no país.
No caso dos Estados Unidos, não é preciso dizer muito, porque muito se tem dito nos últimos dias. Também lá, as manifestações espalham-se e de nada servem. Basta saber o homem que Trump escolheu como conselheiro principal, Stephen Bannon, um racista (white supremacist) e misógino com um passado de fazer o Ku-Klux-Klan parecer moderado. Trump também escolheu para assessores os seus filhos e genro, igualmente gestores da sua fortuna, num conflito de interesses nunca visto numa democracia ocidental. Mas não fiquemos pelos grandes; veja-se o que disse na tv Omarosa Manigault, assessora do magnata: “Todos os críticos e detractores terão que se curvar perante o Presidente Trump. Refiro-me a todos aqueles que duvidaram dele, discordaram, ou o desafiaram. É a maior vingança, tornar-se o homem mais poderoso do Universo”. Sem mudar leis, há muitas maneiras de perseguir as pessoas. Mas também haverá mudanças de leis – dentro da ordem estabelecida, evidentemente.
Para compor esta “Internacional Autoritária”, ainda falta referir o futuro, que parece inevitável. O caso mais falado é Le Pen em França; ainda veremos os franceses aflitos a votar no autoritário Sarkozy para impedir, talvez debalde, a eleição da senhora que também quer limpar a França dos muçulmanos e estrangeiros. Fala-se menos na Itália, onde o populista Beppe Grillo e o seu Movimento Cinco Estrelas terão um crescimento exponencial nas próximas eleições. Na Bulgária, acabam de vencer os votos no general pró-russo Rumen Radev e na Moldávia também outro pró-russo, Igor Dodon, já anunciou que vai fazer um referendo à União Europeia...
Ao contrário do que os militantes da esquerda e da direita gostam de agitar, não se trata aqui de uma questão esquerda ou direita; o autoritarismo tem todas as cores políticas, e o que muda é apenas o vocabulário. Na prática, há liberdade ou autoritarismo, e quando um cresce, reduz-se a outro.
Dizem os intelectuais que depois dos períodos pós-industrial e pós-moderno, agora temos a fase pós-verdade. Esta expressão aplica-se à informação, que se multiplica pelos canais de informação, verdadeira ou falsa, sem ser muito fácil distinguir a sua veracidade. Mas não se aplica à política, onde a verdade continua a mesma: manda quem pode, obedece quem quis ser mandado. Trump disse, na campanha: “posso matar uma pessoa no meio da rua, que não perderei um voto”. Ele é que percebeu Orwell, mesmo sem o ter lido, e por isso ganhou.
Para ver também:
Vivemos um período em que as informações falsas abundam - a tal "pós-verdade" que deixa as pessoas confusas e, sobretudo, enganadas, sem saber no que se pode acreditar. Por isso é bom saber encontrar fontes fiáveis.
Uma delas é sem dúvida a versão digital da melhor revista do mundo, a "The New Yorker", que tem analisado a "desgraça Trump" com precisão e humor. Vale a pena consultá-la amiúde, assinando a sua newsletter.
Outra fonte, menos convencional mas igualmente indispensável, é "The Daily Beast". Gostei do artigo que saiu hoje sobre o modo como Trump utiliza o Twitter para espalhar a sua opinião para 15 milhões de dóceis apoiantes.
Finalmente, num mundo cheio de trivialidades sérias e preocupantes, é sempre um alívio ler uma publicação que fala de Arte - e fala muito bem, mostrando os eventos mais importantes e dando informação sobre as maravilhas de um mercado que ignora crises.
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