Os (1) políticos e a (2) memória

Devia falar dos acontecimentos da semana, não devia? Mas como posso escrever sobre os acontecimentos da semana, se teria inevitavelmente de cair numa cansativa dissertação sobre piadas que não fazem mal a ninguém, mas irritam muita gente — ou então sobre segurança em estabelecimentos militares, que é coisa de que percebo tanto como de gastronomia do Leste da Mongólia?

Por isso, hoje escrevo sobre a minha infância, ou seja, sobre Helmut Kohl.

Não, não o conheço nem passei anos de vida na Alemanha — mas a cara do chanceler acompanhava-me nos jantares, nas notícias, ou aparecia-me nos jornais da papelaria do meu avô.

Lembro-me de Kohl, mas não só. Lembro-me vagamente de Thatcher a falar na televisão. Lembro-me muito bem — tinha eu sete anos — de ver Ronald Reagan a subir para o Air Force One na última noite da sua presidência. Lembro-me de Bush (o pai) e Saddam e Felipe González e Mitterrand (isto para não falar dos nossos, claro).

É coisa que provavelmente não acontecia com os nossos bisavós, mas a voz e a figura dos políticos que aparecem à nossa frente na televisão fazem parte do nosso mundo. Tenho a certeza de que o meu filho, daqui a muitos anos, há-de olhar para uma foto de Macron e lembrar-se da infância. De Macron ou de Angela Merkel. E — Deus meu! — de Trump.

Sim, eu sei: os políticos de hoje parecem uma paródia dos políticos de antigamente. E se calhar até são. Mas a culpa não é só deles — é também do simples facto de o tempo ser o melhor verniz.

A (3) mancha na (4) cabeça

Outra cara de que não me esqueço é a de Gorbachev, com a sua mancha na careca.

A mancha traz-me outras recordações — numa viagem de carro com o meu avô, lembro-me de o ver a proteger a cabeça do sol com uma revista.

A revista discutia o golpe de Estado que viria a ditar o fim da URSS e tinha a bandeira soviética na capa. Pois o sol derreteu a tinta da capa e deixou a foice e o martelo no exacto local onde Gorbachev tinha a sua mancha — só que esta outra mancha estava na cabeça do meu avô.

Quando o meu avô levantou a revista da cabeça e descobriu, no reflexo no vidro do carro, que estava com uma careca muito soviética, partimo-nos os dois a rir. É uma daquelas histórias para contar aos netos — o que no caso do meu avô nem foi preciso, porque os netos estavam ali.

Diga-se que, ao contrário do meu avô, Gorbachev tinha uma mancha na cabeça, mas não era a foice e o martelo. Antes fosse, diriam os responsáveis pelo tal golpe de Estado — lembro-me de ver na televisão uns homens sisudos sentados a uma mesa a querer voltar atrás no tempo e a dar, sem saber, o golpe de misericórdia no seu próprio país.

Porque me lembro da foice e do martelo na cabeça do meu avô? Não sei. Perdoe-me o leitor a história mais pessoal — mas a História (com letra grande) faz parte das nossas histórias. Ou vice-versa, já nem sei.

A (5) Europa na (6) rainha

Continuando a falar de símbolos que aparecem em cabeças desprevenidas: fui daqueles que não conseguiram deixar de ver uma bandeira europeia muito amarfanhada no chapéu com que a rainha Isabel II leu o discurso ao Parlamento.

Pequenos pontos amarelos em fundo azul? Ele há coisas...

Mas admito que devem ser macaquinhos na minha cabeça. Até porque se há país onde as estrelas dessa bandeira não parecem ter cabimento é mesmo em Inglaterra.

Não: não falo só do Brexit. A verdade é que muito antes de haver referendo, já se notava um grande cisma simbólico ali para os lados do Canal da Mancha: enquanto os presidentes franceses (por exemplo) tiram os seus retratos oficiais ao lado da bandeira da União, os líderes britânicos nunca se mostram perto de tal pedaço de pano azul. Alguém imagina a rainha a discursar com a bandeira europeia em pano de fundo? Nem por isso (ela é mais chapéus).

E, já agora, procurem em Londres a bandeira das doze estrelas: terão muito que andar.

(7) Um funeral europeu

A reunificação alemã e o fim da URSS fizeram parte desses anos do fim da minha infância. À distância, surgem-me como o último acto triunfal da grande peça que foi a união da Europa do pós-guerra. É por isso que me parece natural que Helmut Kohl tenha tido o primeiro funeral de Estado da União Europeia.

Mas há que dizer: aquela imagem do caixão envolvido na bandeira azul, apesar de ser uma estreia, assemelha-se a uma foto vinda do passado ou mesmo de um universo alternativo, um universo em que a ideia da união deste continente numa qualquer estrutura política consegue pôr os corações dos europeus a bater mais depressa — e um mundo em que a Europa pode imaginar-se em paz e sossego por muitos e bons anos.

A paz entre os povos da Europa, essa, ainda cá anda. O sossego nem por isso.

Marco Neves | Autor do blogue Certas Palavras. Publicou em Janeiro o seu segundo livro, com o título A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa (Guerra e Paz). É tradutor na Eurologos e professor na Universidade Nova de Lisboa.