O leitor não sabe, nem tem de saber, mas se há político a que sempre tive pó – estranha expressão esta, “ter pó” - é José Sócrates.

Nem sei precisar quando começou esta alergia. Sei dizer que atingi a maioridade com ele a liderar o governo, e nas duas eleições em que ele se aprestou à recondução, votei sempre na oposição.

Não digo isto para reiterar nenhum tipo de presciência, agora que o vemos caído em desgraça: como tantas coisas da adolescência, este sentimento negativo tinha provavelmente tanto de justificado como de aprendido. Mas sei que me ficou, por vários motivos.

Pelo menos desde as tantas notícias que davam conta de uma vida de luxos inacessível à maioria dos assalariados do Estado. José Sócrates recordou em mim um ensinamento precioso da sabedoria popular: quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem. Era esta ignorância, a da fonte da riqueza, que me levava a desconfiar do homem e, por conseguinte, de tudo o que ele dizia e fazia, porque isto quando falta a confiança, já se sabe, falta tudo.

Divulgo isto para que o leitor saiba que não escrevo este texto sob qualquer pretensão de neutralidade: eu, como tanta gente, não preciso de uma decisão do tribunal para formular e afirmar uma convicção quanto à honestidade de José Sócrates, porque li, ouvi e vi tudo o que foi sendo revelado nos últimos anos.

Mas ser desonesto não é crime. E é de crimes que está acusado José Sócrates.

Escrevo estas palavras na quinta-feira, dia 8 de abril, a poucas horas de conhecer a decisão do juiz de instrução sobre quem vai a julgamento, e por quais crimes. Claro que o leitor, a esta hora que me lê, já tem esta informação. É esta minha desatualização propositada: o meu comentário sobre este caso, naquilo que pode ter algum valor, não depende da decisão que saiu hoje.

Até porque, parece, esperam aos curiosos seis mil páginas de leitura: qualquer análise séria feita nesta sexta-feira será sempre uma análise do processo que fica para trás, mais do que da decisão e dos seus fundamentos.

É de parte desse processo que vos quero falar, de uma cronologia que tem de cobrir de vergonha qualquer português.

José Sócrates foi detido a 21 de novembro de 2014, por suspeitas de crimes de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção, e foi-lhe decretada a prisão preventiva 3 dias depois.

Esteve 288 dias preso preventivamente na condição de suspeito – de suspeito não acusado. Duzentos e oitenta e oito dias – repito por extenso, para que não pareça pouco – preso sem conhecer a acusação que lhe era feita, as provas em que se baseava, e como tal sem capacidade para formular uma defesa, boa ou má, mas possível.

Só em 11 de outubro de 2017, quase três anos depois, é Sócrates confrontado com uma acusação à qual pode responder. Hoje, dois mil trezentos e trinta e um dias desde a sua detenção, estamos ainda a perceber, afinal, o tanto que falta andar.

Rejeito a noção de Sócrates como mártir. Não acredito por um momento que tenha sido vítima de uma cabala montada para o prejudicar. Julgo que a legítima suspeição existe, e que os factos que a manifestaram também. Insisto na minha convicção – agora reforçada por anos de novos interrogatórios, material probatório e investigações jornalísticas – de que Sócrates, se não cometeu crimes no exercício das suas funções, agiu pelo menos sem os escrúpulos éticos que exijo a qualquer Primeiro-Ministro.

Mas a decisão de hoje, qualquer que ela tenha sido, vem apenas marcar mais um passo lento num processo que começou pelo fim, pela prisão, e que ao fim de seis anos parece chegar finalmente ao seu princípio.

Fica ainda a faltar, infelizmente, quase tudo.

Este processo, que é dos mais importantes da história portuguesa no combate à corrupção, já leva quase 7 anos, presos que já esgotaram as suas prisões preventivas … e ainda nem começou o julgamento em primeira instância. Isto é inconcebível.

Não quero diminuir a complexidade do processo, que acredito ser dantesca. Nem a sua elevada sensibilidade nacional, que certamente vem justificando tanto atraso, tanto rendilhado, tanta página, tanta diligência. Não se trata só de um ex-primeiro ministro: são arguidos neste processo o ex-ministro e ex-administrador da Caixa, Armando Vara, os ex-homens fortes da PT, Henrique Granadeiro e Zeinal Bava, e o ex-presidente do BES, Ricardo Salgado, homens que mandaram no país, na banca, na economia, durante anos, verdadeiros Marqueses, quando não Reis, de Portugal.

É importante que essa complexidade seja reconhecida, porque queremos que se faça justiça, e esta raras vezes se compadece de pressas. Mas é igualmente essencial assumir que o sistema já falhou neste processo.

O sistema já permitiu a prisão de um cidadão português por 288 dias sem acusação. Permitiu que a acusação chegasse apenas três anos depois. Permitiu que tivesse de esperar seis anos para saber se vai ter, sequer, o seu dia em tribunal. E permitirá, temo, a prescrição de muito do que vier a ser provado.

E isto é intolerável. Merecíamos que este processo tivesse sido conduzido de forma absolutamente incontestável, e não foi. Merecíamos que José Sócrates não pudesse chegar a este dia com razões legítimas, válidas, de queixa na forma como o sistema o tratou, e chega. Que José Sócrates não tivesse elementos para pedir a condenação do Estado Português no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos por violação dos seus direitos, e tem.

O sistema já falhou, e resta-nos esperar apenas que não volte a falhar. Se for para avançar, que seja rapidamente e pela clareza das provas, pela quase certeza da condenação. Se ficar por aqui, que seja porque soubemos admitir que a acusação não foi capaz, ao fim de tanto tempo, de construir um corpo probatório suficiente. E, nesse caso, é imperioso terminarmos por aqui, já, sem medos e sem vergonha.

Em Portugal, a corrupção é ainda largamente recompensada, com poucas consequências criminais e políticas. O povo português acredita que há quem esteja acima da lei, porque há, efetivamente, quem esteja acima da lei. É essa a experiência dos antepassados, continua a ser essa a nossa experiência.

A Operação Marquês foi um dos poucos momentos em que acreditámos, enquanto país, que a lei criminal também se aplicava aos Marqueses. Era importante que tivesse sido um processo inteiramente limpo, sem margem para lamúrias e vitimizações. Não foi e aí já perdemos todos.

Agora, é seguir com o julgamento de quem for a julgamento, com os recursos de quem for recorrer, com os incidentes processuais e as intervenções e, um dia, se o tempo permitir, se os crimes não prescreverem, podemos estar a discutir se conseguimos, finalmente, condenar um Marquês por corrupção.

Esse dia não é hoje, nem podia ser, porque a justiça está atrasada. Há quem diga que a justiça tarda, mas não falha. Não é verdade. Uma justiça tardia falha quase sempre.

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