Há uns tempos, encontrei um daqueles amigos-só-do-Facebook que acreditava numa teoria linguística espectacularmente errada: segundo ele, o português vem do grego antigo e a ideia de que falamos uma língua latina nasceu com os românticos — e desde então tem enganado gerações e gerações…
Provas? Coisas como a palavra «palavra» ter origem no nome da deusa Pala (é mentira: a palavra «palavra» vem da «parabola» latina) e outras parecenças dessas, circunstanciais, aleatórias… É o tipo de pensamento nebuloso, embrulhado num discurso de aparência coerente e informada, que nos deu tantos e tantos erros e delirantes edifícios intelectuais ao longo da história.
Não são tão conhecidos como os terraplanistas ou os crentes nos rastos químicos dos aviões, mas também há teóricos da conspiração para todos os gostos no mundo da língua: o português veio do fenício, veio do árabe, veio do grego, veio disto ou daquilo… Que tantos e tantos estudiosos tenham acumulado toda uma história complexa e ainda não terminada do caminho que a nossa língua percorreu do latim popular até ao português de hoje em dia, passando pelos séculos em que o português e o galego não se distinguiam — nada disso interessa! Há umas quantas palavras de origem árabe? Falamos árabe! Há umas quantas palavras de origem grega! A nossa língua é grego puro!
E, claro, como bons teóricos da conspiração, os factos que apresentamos só reforçam as ideias delirantes dos donos das verdades alternativas. Deve ter que ver com um qualquer mecanismo cerebral, talvez a propensão humana para explicar tudo através de narrativas pessoais: gostamos mais de pensar que somos um herói intelectual num mundo de gente enganada ou enganadora do que passar pelo trabalho de aprender o que já se sabe e, talvez, com o nosso esforço, deixar mais uma pedrinha nessa construção colectiva que é o conhecimento humano.
Sim, eu sei que o progresso do conhecimento humano exige estarmos sempre a pôr em causa o que sabemos: mas pôr em causa não é inventar por inventar — pôr em causa é testar o que sabemos, ou seja, contrariar propositadamente o que pensamos, mas de forma honesta e, acima de tudo, sem ignorar os factos que estão em cima da mesa. As teorias com que explicamos o mundo testam-se e melhoram-se, não se descartam com um gesto displicente. Se alguma delas se revelar errada, não a devemos substituir por outra que explica ainda menos do que a anterior e contraria quase tudo o que sabemos.
Os cientistas sabem que, se provarem que uma teoria reinante está errada, ficarão famosos: mas essa prova não se faz mandando umas larachas nem apresentando teorias absurdas só pelo gosto de não acreditar no que todos acreditam. Faz-se com trabalho, investigação e cautela. Pouquíssimos são os que conseguem porque a verdade é que aquilo que sabemos depois de séculos de pesquisas costuma aguentar-se à bronca. A Terra pode não ser exactamente redonda, mas muito menos é plana. A nossa língua tem palavras de muitas origens, mas continua latina… E as teorias da conspiração continuarão a existir enquanto existirem seres humanos!
A história verdadeira da língua é tão interessante: não é preciso inventar um universo alternativo. Até porque, para inventar por inventar, bem podíamos dizer que falamos uma língua extraterrestre. Basta reparar que não sabemos a origem dumas quantas palavras e, a partir daí, explicar ao mundo que o português só pode ser do planeta Xénon. Bem, é melhor estar calado…
Agora pergunto: como dialogar com quem tem estas teorias estapafúrdias? Um primeiro passo será reconhecer que uma pessoa pode acreditar num disparate numa área e até ser muito razoável noutra. Se não podemos conversar sobre a língua, podemos conversar sobre outra coisa. E, depois, ganhando confiança, talvez o diálogo comece a ser produtivo mesmo em áreas onde acreditamos em teorias radicalmente diferentes. Sem esquecer que tal não significa que todos têm razão: o português não tem origem no grego…
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é História do Português desde o Big Bang.
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