Rainhas à turra
Uma das histórias da semana foi o desaguisado entre as duas rainhas de Espanha: Sofia queria tirar uma foto com as netas e Letizia não deixou. Ou, pelo menos, esta é a história que muitos querem ler nas tremidas imagens guardadas no baú do YouTube. Pode ser isso ou outra coisa qualquer. Enfim, não interessa. Cenas duma família que às vezes é como as outras.
Agora, o que já me interessa é o remoinho de reacções que li na nossa praça virtual. Parece que há portugueses que acusam a rainha dos nossos vizinhos de ser demasiado plebeia — e que aquele vídeo é a prova provada que esta mania de enfiar gente de sangue um pouco menos azul nas famílias reais só pode dar mau resultado! (De facto, desde que os príncipes da Europa começaram a casar com gente menos depurada, as famílias reais deixaram de ser o exemplo de paz e concórdia que sempre foram, pelo menos a acreditar nas histórias infantis.)
Não sei o que dizer perante este ataque de snobeira portuguesa. Ou melhor, sei: mas antes de me atrever a dizê-lo, vou contar mais uma história com rainha dentro.
A rainha de Inglaterra descende de Maomé?
Parece que alguns jornais de países islâmicos andam a tentar provar que a rainha Isabel II é descendente de Maomé. Até a circunspecta The Economist fala do assunto.
Estas notícias não têm pés nem cabeça. Porquê? Porque, na verdade, é praticamente impossível que a rainha Isabel II não descenda de Maomé. Ela e eu — e ainda o meu caro leitor. E a pobre da Letizia, plebeia como é. Mais: o senhor da mercearia da esquina também é descendente de Maomé — e é provável que também seja descendente de Carlos Magno, só para apimentar as coisas.
Se pensarmos bem na quantidade de ascendentes que cada um de nós tem, chegamos a uma conclusão extraordinária: temos 2 pais, 4 avós, 8 bisavós — há 30 gerações, cada um de nós teria mais de 1000 milhões de avoengos, o que ultrapassa em muito a população dessa longínqua época.
O que significa isto? Que os nossos antepassados estão todos misturados e que todos partilhamos muitos desses antepassados. Na verdade, a matemática e as recentes análises genéticas dizem-nos que todos os Europeus — todos: rainhas e merceeiros — tiveram um ascendente comum há apenas 600 anos. E, com toda a probabilidade, somos todos descendentes de 80% dos europeus que viveram há 1000 anos. As surpresas continuam: há apenas 3400 anos, viveu uma pessoa que é ascendente de todos os seres humanos de hoje em dia. Sim, todos: desde a rainha Isabel II ao bebé que nasceu há três minutos numa tribo isolada na Amazónia.
Parece incrível? Aqui fica uma sugestão de leitura para quem duvida: A Brief History of Everyone Who Ever Lived, de Adam Rutherford. (Gostava muito de ver este livro traduzido para português...)
Como o autor explica muito bem com base no mais recente conhecimento genético, a nossa espécie entretém-se há muito a trocar genes (e beijos) por todo o mundo — se as análises genéticas conseguem detectar velhas migrações e perceber a composição das várias populações, temos agora a certeza que os nossos genes são tudo menos puros, o que só se recomenda. Por outro lado, quando uma família insiste muito em manter a pureza, surgem aberrações como Carlos II de Espanha, que era tão puro, mas tão puro que teve uma desgraçada vida, a rebentar de doenças por todos os poros — a história está também no livro de Rutherford.
Portanto, sim, tendo em conta as trocas e baldrocas entre a Europa e a Arábia nos últimos 1000 anos, é certo que a rainha Isabel II descende de Maomé — e nós também. Aliás, espanhóis, portugueses, ingleses, franceses, italianos, espanhóis de todo o tipo: todos descendemos das mesmas (muitas) pessoas.
A rainha Letizia, plebeia como é, será também descendente de muitos reis castelhanos — e portugueses! Sim, no meio disto tudo, temos esta surpresa: é muito provável que Letizia seja descendente de Afonso Henriques — tal como eu, o meu leitor e a rainha Sofia.
Marco Neves | Tradutor e professor. Autor do livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa. Escreve no blogue Certas Palavras.
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