A história é simples: em 2011, Slater, especialista em fotos da natureza, passou uma temporada na Indonésia com um grupo de macacos duma espécie em extinção chamada “Celebes crested”. Os animais mostraram-se desconfiados ao princípio, mas Salter brincou com eles, deixou-os mexer nos equipamentos à vontade e acabou por criar uma ligação de grande proximidade. Reparou que os símios eram particularmente avessos a ver-se refletidos na objetiva da máquina – a sua própria imagem perturbava-os. Com muita paciência, conseguiu que um deles vencesse essa inibição e, por mimetismo, levou-a a pegar numa câmara e fazer uma série de selfies. Era uma fêmea, que batizou de Naruto.

De volta a casa, Salter colocou as fotografias na agência Caters e começou a receber pagamentos (royalties) pelos direitos de autor (copyright), na forma do costume. Terá ganho o suficiente para pagar as despesas de viagem. Até que, em 2014, o blogue Techdirt e a Wikipédia usaram um dos selfies de Naruto e não enviaram os royalties. A agência interpelou-os e ambos recusaram. A Wikipédia argumentou que a fotografia não estava sujeita a direito de autor porque o autor era um macaco. O Techdirt afirmou mais ou menos a mesma coisa: a fotografia é do domínio público porque um macaco não tem personalidade legal, passível de ser dona de direitos de autor. Quanto a Slater, não tem direitos porque não foi ele que disparou a máquina.

O serviço público norte-americano que regula estes direitos, (US Copyright Office) e que é conhecido pela sua minuciosidade e imparcialidade, confirmou que os animais não podem ter direitos de autor.

Slater argumentou que o autor não era Naruto, mas ele próprio: “A fotografia não aconteceu por acaso. Foi preciso muito empenho e perseverança da minha parte, suor e angústia (para levar Naruto a imitar os gestos de apontar a máquina e premir o disparador).”

Enquanto ficava pendente esta questão – se o autor era Naruto ou Slater – a fotografia foi reproduzida em milhares de sítios, impressos e digitais, considerada como domínio público.

Slater recorreu aos tribunais mas depressa ficou sem dinheiro para advogados e custas legais. Segundo ele, se recebesse uma libra por cada publicação, já teria ganho mais de 40 milhões. Mesmo não considerando este valor impossível de determinar, seriam muitos milhares, com certeza.

A questão, até aqui, era de direitos de autor; ou seja, se o autor fosse Slater teria direito a receber, se era Naruto, não havia direitos a cobrar. Uma questão em aberto, ultrapassada pela grande divulgação da selfie, que impossibilitava a Slater processar toda a gente.

É interessante recordar um paralelo: a fotografia analógica com negativo/positivo foi inventada pelo inglês William Fox Talbot em 1835. É o processo que, com aperfeiçoamentos, foi utilizado no mundo inteiro nas fotografias preto e branco até ao aparecimento do sistema digital. Fox Talbot patenteou o “calotipo” (como lhe chamou, em 1840) e a partir daí passou a processar toda a gente que infringisse a patente. Como a fabricação dos calotipos estava ao alcance de qualquer pessoa, rapidamente o inventor se viu perante milhares de processos. Morreu arruinado e injustiçado.

O caso do selfie de Naruto podia ter acabado aqui. Mas em 2015 a PETA interessou-se pelo assunto e processou Slater em São Francisco, Califórnia, em nome da macaca. O que a PETA queria é que Naruto recebesse direitos pelo uso da imagem – direitos esses que, à falta de proprietário do animal (que vive numa reserva natural), ou de herdeiros presumíveis, seriam entregues à própria PETA para prosseguir os seus fins de defesa dos direitos dos animais.

Slater não podia comparecer ao julgamento por não ter fundos suficientes para viajar para a Califórnia. Estava arruinado, farto da polémica, e a pensar em mudar de profissão.

Em 2016, o tribunal decidiu contra a PETA argumentando, entre outras razões, que a organização não tem proximidade com o animal que justifique receber direitos e também que o animal não tem esses direitos – de acordo com o já decidido pelo Copyright Office.

A organização decidiu recorrer para a segunda instancia (Court of Appeals) e a semana passada voltou a perder.

A questão da autoria fica assim resolvida sem uma solução concreta. Ou seja, legalmente a selfie não pertence a ninguém, portanto pode ser usada por toda a gente. Mas certamente que teve um autor é insólito que o autor não possa ser identificado.

Também se levanta outra dúvida, que é a do direito à imagem (consagrado em todo o mundo, inclusive na nossa Constituição, dentro do direito à identidade). A quem pertence a imagem dum animal? O nosso Estatuto dos Animais, aprovado recentemente (1 de maio) pela Assembleia da República, reconhece que os animais “são objeto de proteção jurídica”, mas é omisso quanto ao caso específico da imagem. Pertence ao animal? Certamente que não, uma vez que ele não pode objetar quanto ao seu uso nem decidir o destino de eventuais receitas que proporcione. Pertencerá ao dono? Mas em muitos casos, como o de Naruto, não há dono.

Vivemos numa sociedade que, muito justamente, se preocupa minuciosamente do bem-estar dos animais, mas que não consegue resolver, nem por alto, do bem-estar das pessoas. Numa outra vertente, cultiva a autoimagem – da qual o selfie é um símbolo– sem resolver questões de autoestima e de respeito pela imagem alheia. Pessoas expõem-se sem pudor na televisão e vêem-se imagens de cadáveres ao vivo e a cores sem nenhum respeito pelos mortos. Naruto, uma macaca que até foi parte em tribunal (onde se enganaram quanto ao seu sexo e idade), desencadeou uma turbulência que levantou muitas questões e não resolveu nada. Um paradigma do mundo disléxico que está a ser este século XXI.