
Como já não se fala da Sérvia desde que foi derrotada pela NATO, em 2000, talvez seja bom refrescar rapidamente alguns dados. Ao princípio a Jugoslávia fazia parte do Império Austro-Húngaro, mas de muito má vontade, e numerosos grupos “terroristas” (usando o vocabulário de hoje) provocavam conflitos e atentados. Precisamente, o assassinato do Arquiduque Franz Ferdinand da Austria por um membro da organização Jovem Bósnia, levou o Império a declarar guerra à Servia, o que por sua vez foi a causa da I Guerra Mundial.
Com a derrota da Alemanha e o fim do Império Austro-Húngaro, em 1918, foi fundado o Reino da Jugoslávia, que incluía Sérvia, Croácia e Eslovénia.
Pelos acordos de Ialta (1941) o reino ficou na quinta da URSS, pelo que em 1945 se tornou uma República Socialista dirigida pelo lendário Marechal Tito, que conseguiu não só manter juntas as três nações do antigo Reino, como até fez frente a Estaline. Para manter a coesão, Tito misturou o mais possível sérvios, croatas e eslovenos. Claro que, quando a URSS caiu, também foi abaixo a convivência forçada, que se manteve entre 1992 e 2003 e acabou com a criação de vários países e territórios: Sérvia, Montenegro e Kosovo de um lado, Croácia e Eslovénia do outro, e Albânia no meio. O Kosovo, predominantemente muçulmano (os outros são cristãos, romanos ou ortodoxos) declarou-se independente da Sérvia em 2008 e aproximou-se da muçulmana Albânia. A unificação forçada de Tito, em vez de formar um país homogéneo, criou uma situação tribal em que cada uma das etnias hostilizava as outras.
Finalmente, os sérvios invadiram o Kosovo em 1992 e tentaram fazer uma limpeza étnica dos muçulmanos da Bósnia Esgrovina e da Albânia. A brutalidade dos sérvios foi tal que chamou à atenção das opiniões públicas europeias e a NATO começou a bombardear a capital da Sérvia, Belgrado. A chamada Guerra do Kosovo terminou em 2000 com a derrota da Sérvia e o julgamento pelo Tribunal Internacional da Haia dos principais dirigentes do país.
Este pequeno resumo omite as brutalidades de toda a espécie cometidas ao longo dos anos - só o Marechal Tito terá mandado assassinar cerca de 70.000 pessoas para consolidar o Partido Comunista. Também não falamos das infinitas peripécias, guerras, batalhas e massacres, porque nunca mais acabávamos. E chega de História.
O actual Presidente da Sérvia (que é agora é uma república constitucional) Aleksandar Vucic, do partido Progressista, ganhou as eleições de 2017. O anterior, Boris Tadic, do Partido Democrático, foi eleito em 2004 e reeleito em 2008.
(Uma sondagem recente mostrou que 64% da população é a favor da restauração de uma monarquia, o que dá uma ideia de como andam aquelas cabeças.) Adiante
A Sérvia apresentou o seu pedido de adesão à UE em dezembro de 2009, entrando assim no labirinto burocrático de Bruxelas, chamado “Processo de Estabilização e Associação”, tendo-lhe sido concedido o estatuto de país candidato em março de 2012. As negociações começaram em janeiro de 2014. Um dos principais problemas tem sido a corrupção generalizada, sob todas as formas: finanças, atribuição de penas, favores diversos - bem, aquilo que nós aqui conhecemos, mas em proporções desmedidas.
A questão de fundo que realmente se coloca é a da adesão à União Europeia ou da passagem para a esfera de influência da Federação Russa. Para a maioria dos jovens, a entrada na UE significa um futuro muito mais prometedor do que a passagem a estado vassalo de Putin. Vucic diz que quer a entrada na UE, mas não tem feito nada para a facilitar. Pelo contrário, é considerado autoritário e apreciador da democracia iliberal da Hungria, com um registo de limitação da liberdade de imprensa e redução das liberdades civis.
Todos os sérvios sabem que Moscovo tem influenciado as eleições e feito uma campanha densa nas redes sociais. Paira no ar a dúvida quanto às reais intenções de Vucic. Ainda na sexta-feira declarou que a Sérvia fará parte do das celebrações da vitória na II Guerra Mundial, para grande tristeza de Bruxelas. A sua “neutralidade" em relação à Guerra da Ucrânia torna-o pró Federação Russa, implicitamente.
A outra questão é a corrupção. No ano passado a cobertura da estação ferroviária de Novi Sad desmoronou, matando 16 pessoas. (Quem se lembra de uma situação idêntica na Estação do Cais do Sodré, em 1963?)
A razão do desastre foi o uso de materiais de segunda, poupança no ferro das cofragens, pagamentos a fiscais - o costume.
As manifestações contra este estado de coisas começaram imediatamente e este mês os protestos chegaram a 400 cidades e não param de aumentar. Até no Parlamento tem havido discussões musculadas, com lançamento de granadas de fumo.
Por outro lado, é verdade que também tem havido manifestações pró Vucic, mas muito mais fracas.
As manifestações levaram o primeiro-ministro, Milos Vucevic, a pedir a demissão em janeiro, mas até agora o Parlamento não a concretizou. Passado o prazo de 30 dias, o Presidente terá de declarar eleições intercalares. Apesar do Partido Progressista ter recorrido a intercalares mais do que é normal numa democracia parlamentarista consolidada, os especialistas acham que desta vez não estará interessado, dada a óbvia superioridade mobilizadora dos movimentos de oposição.
Quanto aos contestatários, uma eleição talvez não resolva os seus receios subjacentes - como já dissemos, uma orientação pró-russa em vez do longo caminho para a UE.
A Sérvia, tal como todos os países da região, vive sempre com o espectro do projecto putinesco do Império Euro-Asiático a espreitar pela porta.
Comentários