O vício da indignação

Isto é só uma questão de estar atento: se olharmos para o Facebook durante alguns minutos, lá aparece a polémica du jour (vai em francês porque isto é uma crónica muito oitocentista). Neste caso, a culpa nem foi da famosa rede social. Tudo começou num jornal nacional que anunciou ao mundo: Os Maias vão deixar de ser leitura obrigatória! Ah, pois — agora os jovens vão passar a dar na escola posts de Facebook. Ou — pior! — vão passar a analisar fotos no Instagram...

Ora, a verdade, como acontece quase sempre, está longe de ser como diz o título bombástico. O ministério veio propor que os professores escolham uma obra de Eça em vez de obrigar à escolha entre Os Maias e A Ilustre Casa de Ramires. Sim, pelos vistos, Os Maias já não são obrigatórios há uns anos, mas a leitura de Eça continua a ser parte do programa de Português. Ainda não é desta que o mundo acaba.

Muitos partilharam as notícias que desmentiam o título; outros continuaram a partilhar a notícia original, sem ligar a esses desmentidos; alguns perceberam o que se passava, mas declararam-se igualmente indignados: não, não devemos poder escolher uma obra do autor. Se os miúdos não forem todos obrigados a ler aquele romance em particular, o mundo está perdido. Não nos tirem a nossa indignação da semana, por favor!

Passado e ilusão

Lendo as discussões intermináveis, lá fui percebendo uma coisa: na cabeça de muita gente, há mesmo um tempo mítico em que os jovens portugueses liam todos Os Maias — e agora isso já não acontece.

Ah, lamento desiludir: a leitura da obra foi obrigatória durante décadas, mas havia muitas maneiras de não a ler... Conheço muitas pessoas de todas as idades que nunca acabaram de ler o romance e sabem, assim muito pela rama, que há por lá beijos entre irmãos — e pouco mais. Aliás, muitos portugueses nem sequer tiveram a oportunidade de fingir ler Os Maias porque nunca chegaram ao Ensino Secundário...

Também conheço pessoas de todas as idades que leram a obra — e não são assim tão poucas. Se virmos bem, é possível que seja o romance que mais portugueses leram de fio a pavio. Não serão todos, nem sequer a maioria, mas que outro romance tantos leram?

Será que estamos melhor ou pior neste particular aspecto da nossa educação? Enfim, gostava de ter um estudo — daqueles sérios — que nos mostrasse a percentagem de pessoas, nas várias gerações, que leram até ao fim o maior romance de Eça. Talvez houvesse no estudo algumas surpresas. O problema é que era preciso que os participantes não mentissem... O que não é fácil. Talvez um pequeno teste sobre conhecimentos queirosianos. O problema é que muitos iriam usar os resumos para responder. Uma chatice, isto.

Mas, voltando aos tantos que por aí desataram a reclamar por causa de qualquer coisa que não era bem como pintavam (o Eça continua bem obrigatório, para mal dos pecados dele — e Os Maias não deixaram de ser obrigatórios esta semana), caio na tentação de generalizar. É que esta indignação desmedida, este gosto pelo discurso empolado, esta incapacidade para desconfiar da memória muito cor-de-rosa que temos do passado... Enfim, tudo isto parece-me sinal de que muitos leram pouco ao longo da vida e ignoraram completamente o Eça — ou então leram tudo a correr, porque era obrigatório e pouco ganharam com a literatura que empinaram.

Estou a ser injusto, certamente. Mas aqui fica a deixa: o espírito crítico de que tantos falam também implica isto: desconfiar dessas certezas magníficas e ter algum cuidado em não cair numa idealização do passado que, muitas vezes, é tão perigosa como a idealização do presente. Ler Eça ajuda nisto, de facto. (Mas acima de tudo, ler Eça é saboroso. Devia chegar.)

Leituras de Verão

E agora, depois de dito tudo isto, a bomba: acho que Os Maias podiam muito bem voltar a ser obrigatórios. É bom haver um ou dois romances que muita gente leu. É bom haver referências comuns, haver uma série de memórias partilhadas, mesmo que sejam memórias não de acontecimentos reais, mas de uma soberba ficção. É bom lembrar-me de Ega vestido de Mefistófeles, é bom lembrar-me dos jantares de amigos, é bom lembrar-me do regresso de Carlos depois de anos de viagem, é bom lembrar-me daquele final em que os dois amigos a correr declaram não valer a pena correr por nada.

Ah, dirá o leitor mais desiludido, mas poucos ficam com o gosto pela leitura... Dos milhares de adolescentes que lêem um livro apenas porque é obrigatório, há uma multidão que nunca mais lerá nada na vida — sim, eu sei, mas há uns quantos (e não são assim tão poucos) que, quase sem querer, ficam com o bichinho nas mãos. Por mim, isso vale a pena — tal como vale a pena passar os olhos durante umas horas pela escrita de Eça.

Mas, concordemos ou não com essa obrigatoriedade, o que importa é ler. E Os Maias são mesmo um excelente sítio para começar. Todos os que gritaram e partilharam as notícias sobre o caso podem agora pegar no livro e lê-lo no Verão. Talvez alguns consigam confessar a si próprios que estão a fazê-lo pela primeira vez. Não faz mal: mais vale agora do que nunca.

Não consigo escrever muito mais. É tarde e estou cansado. Acabei de chegar de um jantar para festejar a chegada de dois amigos a Portugal, vindos de países bárbaros onde ninguém lê o Eça. Enquanto escrevo estas palavras, ainda tenho os sons do jantar, das conversas, das piadas, do prazer que é estar entre os nossos, como fazemos há tantos anos. É esse também um dos segredos do romance do Eça: é uma homenagem aos amigos, aos pequenos prazeres — jantares, conversas, maluqueiras —, a essa surpresa de ver passar os anos e perceber como algumas caras continuam ao nosso lado.

Calhou-nos na rifa das nações sermos um país em que o grande romance que todos lêem (ou quase todos...) tem como protagonistas dois amigos — um romance escrito por quem soube descrever a amizade sem banalidades e com um português de comer e chorar por mais. Há sortes piores.

Bom Verão e bom Eça!

Marco Neves | Tradutor e professor. Autor do livro A Baleia Que Engoliu Um Espanhol. Escreve no blogue Certas Palavras.