Há alguma coisa que possa impedir a invasão da Ucrânia pela Rússia? A pergunta é do “The Economist” esta semana. A resposta, ninguém sabe. E as consequências também são apenas conjecturas.

Desde as vésperas da II Guerra Mundial, nunca a Europa esteve tão próxima de um conflito armado de extensão e consequências inimagináveis. A pandemia da Covid-19 (e, no caso de Portugal, ainda as eleições do dia 30) têm mantido a opinião pública bastante afastada da ameaça, mas o perigo é real.

Aparentemente, o Presidente Biden acha que uma invasão da Ucrânia é inevitável. Mas os líderes europeus, que certamente têm um maior interesse de proximidade num conflito, não parecem muito convencidos, nem têm uma estratégia comum. É um facto que ninguém pensa, nem parece ser a intenção de Putin, que possa haver uma guerra à escala do continente. Mas uma agressão não provocada a um país do tamanho da França não pode ter boas consequências. Por uma questão de princípio, com certeza, mas também pelos resultados práticos.

As motivações russas parecem resumir-se, por ora, na reconstituição da Rússia “do antigamente”, que não inclui a Polónia, Eslováquia, Hungria, Roménia e Bulgária, os países europeus que estavam do lado deles na “cortina de ferro” e estariam a seguir. Sabe-se – porque ele o tem dito em muitas ocasiões – que a ambição de Putin é reconstituir o Império Russo da História, ligeiramente mais pequeno do que a URSS, uma vez que a Estónia, Letónia e Lituânia não aparecem nos seus discursos. Quanto à Bielorússia e o Cazaquistão, é como se já fizessem parte da Rússia, uma vez que são países dirigidos por ditadores alinhados com Moscovo e que só sobrevivem graças a esse apoio. Ainda agora Kassym-Jomart Tokayev, o homem de mão do eterno Nursultan Nazarbayev, pediu a intervenção de tropas russas para esmagar uma revolta do povo do Cazaquistão.

As fronteiras desta região limítrofe entre a Europa “clássica” e a Rússia estão estáveis (mais ou menos...) desde 1945, e a independência das ex-repúblicas soviéticas começou em 1989, quando o regime comunista desabou. A Ucrânia tornou-se oficialmente independente em 1990.

Então, porquê este interesse premente de Putin na Ucrânia?

Por um lado, há a narrativa histórica. Durante a I Guerra Mundial, os ucranianos, que se constituíam num reino cossaco independente desde 1648, dividiram-se entre os dois lados do conflito. Em 1917, a Ucrânia tornou-se um país independente, para ser imediatamente integrada na Rússia, e foi uma das repúblicas fundadoras da URSS em 1922. É esta a Ucrânia que todos nós conhecíamos, o celeiro da URSS e a maior vítima colectiva do Grande Terror estalinista de 1937-38. (Da Ucrânia que foi o país mais poderoso da Europa, nos séculos X e XI, já ninguém se lembra, nem eles.)

Khrushchev, que nasceu em Kurst Oblast, a apenas 11 quilómetros da fronteira entre Rússia e Ucrânia, foi um grande amigo desta república – tanto que, em 1954, transferiu a península da Crimeia da primeira para a segunda. A República ganhou grande importância no sector da produção de armamento e da alta tecnologia. Muitos membros da oligarquia soviética eram de origem ucraniana, inclusive Leonid Brezhnev. A integração era total.

Enquanto essa simbiose existiu, tanto fazia que a Crimeia fosse tecnicamente de um ou de outro; mas a partir de 1990, o facto de a península ser a porta da Rússia para o Mediterrâneo passou a fazer uma grande diferença. Não surpreende que Putin, assim que se instalou inequivocamente no poder, tenha querido resolver essa questão estratégica; em 2014 invadiu a península, usando como desculpa uma suposta opressão da minoria russa residente.

Entretanto, a Ucrânia ia vivendo os seus próprios problemas internos. Em 2004, o primeiro ministro Viktor Yanukovych, ganhou fraudulentamente as eleições presidenciais e, perante o desagrado da população, mandou envenenar o seu principal opositor Viktor Yushchenko. Uma revolta, baptizada de Revolução Laranja e abençoada pelo Ocidente, levou Yushchenko ao poder, juntamente com a carismática Yulia Tymoshenko.

Mas a partir de 2013, Yanokovych, que até então tinha sido pró-integração europeia, mudou de rumo e começou a aproximar-se de Moscovo, o que provocou distúrbios em várias cidades.

O diferendo entre pró-europeus (encorajados pelos Estados Unidos) e pró-russos (apoiados por Putin) definiu – e ainda define – a política ucraniana nas duas últimas décadas.

Em 2014 foi eleito presidente Petro Poroshenko, oficialmente um social-democrata, que tentou desenvolver alguma forma de entendimento entre a facção pró-russa e a facção pró-ucraniana, ao mesmo tempo que teve de engolir a invasão da Crimeia. Tentou negociar com a Rússia – sem sucesso, uma vez que Putin não quer negociar, quer anexar. Por outro lado, aproximou-se da Europa e pediu formalmente a adesão da Ucrânia à NATO.

Em 2019, surpreendentemente, Poroshenko perdeu as eleições para um actor que na televisão fazia um papel fictício de Presidente, Volodymyr Zelensky.

Não há um consenso sobre o que fez Poroshenko perder as eleições, mas, mais do que a questão sobre como lidar com Putin, parece que o seu grande falhanço foi na corrupção. Zelensky ganhou precisamente porque o seu papel na tv era de um presidente honesto e cheio de bom senso. (Aqui está um bom tema para estudar a influência da exposição mediática na política, como Ronald Reagan, nos Estados Unidos, Manny Pacquiao, nas Filipinas, ou Marcelo Rebelo de Sousa, em Portugal.)

Como dissemos, esta é a perspectiva da História, de 1917 para cá, pelo menos. Mas a perspectiva da política é, quiçá, mais importante, tem a ver, por um lado, com o desejo de Putin de reconstituir o esplendor soviético sob a sua ditadura “iliberal”, por outro a vontade da Ucrânia de aderir à NATO, para garantir protecção em caso de ser atacada. (Como é sabido, o grande princípio da NATO é que um ataque a um dos seus membros é um ataque a todos.)

Putin, independentemente dos desejos expansionistas – ofensivos – tem de pensar na protecção da Rússia – defensiva. Não pode permitir mais um país na NATO (uma aliança que já devia estar defunta, uma vez que se destinava a combater a falecida URSS); sobretudo, não pode permitir a NATO mesmo na sua fronteira. Seria muito mau para a sua imagem no país.

Portanto temos aqui um caso de dois interesses, não apenas divergentes, mas completamente antagónicos. Putin exige, e neste caso até tem razão, que a NATO não continue a morder-lhe os calcanhares. A NATO até podia perfeitamente prescindir da Ucrânia, mas não pode permitir que seja o adversário a definir quem pode ou não pode fazer parte da Aliança.

A Rússia tem a favor da sua pressão um exército de 1.014.000 homens, para não falar do armamento de ponta e armas nucleares. Nem por sombras a Ucrânia, nem sequer a Europa, têm forças armadas que se comparem. Oficialmente, as forças armadas de todos os países da UE somam 1.900.000 homens, mas está-se mesmo a ver o que seria coordenar esta plêiade de egos para fazer uma frente de milhares de quilómetros a Leste. E os Estados Unidos estão muito longe, além de não terem disposição, digamos assim, para se meter numa guerra a sério na Europa.

Antony Blinken, do lado norte-americano, e Sergei Lavrov, pelos russos, estão em conversações constantes, mas nenhum arreda pé. Os ucranianos, além do perigo consumado que têm pela frente – basicamente, de que não são eles quem vai decidir o seu futuro – ainda têm que lidar com Porshenko, que voltou para Kiev de um conveniente exílio, e está disposto em fazer uma frente anti-Zelenski.

Putin sabe tudo isto. E sabe que o Ocidente, não sendo uma ameaça, não é um peso-pesado. Por outro lado, as sanções de que europeus e americanos falam, como seja a saída da Rússia do sistema de pagamentos internacional (SWIFT) e o congelamento de contas bancárias de oligarcas notórios, podem fazer-lhe mossa, mas também pode viver com elas.

São estas considerações que é preciso levar em conta: o que passa pela cabeça de Putin. O que ele quer, todos sabemos; como ele vai pesar os prós e contras, só ele sabe.

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