A última vez que nos lembramos de falar no Haiti foi aquando do terramoto devastador de 2010 ou da epidemia de cólera que se lhe seguiu. Também houve protestos sobre a forma como a bem-intencionada ajuda humanitária das Nações Unidas desapareceu sem mostrar qualquer benefício para a população. Ninguém sabe se os milhões foram absorvidos pelas autoridades locais e importados (houve um corpo de intervenção liderado pelo Brasil) ou pelas ONG que se multiplicaram no terreno. Nove mil milhões de dólares desapareceram de todas as maneiras possíveis, e hoje o país continua tão pobre e desesperado como em 2010.

Certamente não falamos no Haiti das inúmeras vezes que a política local, completamente disléxica, produziu revoluções e mudanças de presidente. Ao contrário da fome, que perturba o mundo todo, mas que ninguém no mundo faz nada, a situação política não parece interessar nem os norte-americanos — que mandaram no país durante a época em que se metiam em tudo o que mexesse ao Sul do Rio Grande.

Actualmente, para quem queira saber os pormenores, só há dez dos trinta membros do Senado porque os outros terminaram os mandatos há mais de um ano, o parlamento não tem ninguém, porque os mandatos acabaram o ano passado, e o Presidente do Supremo Tribunal acaba de morrer de covid. O judiciário também está paralisado, com os juízes em grave para chamar a atenção para o perigo que a carreira representa. Os gangues que entretanto se formaram não levam a bem condenações em tribunal, nos poucos casos que chegam a julgamento.

Segundo a opinião de Didier Le Bret, ex-embaixador francês no Haiti, está tudo na mão do Primeiro Ministro interino, Claude Joseph. Interino, porquê? Porque foi demitido há dois dias pelo Presidente assassinado. Era o sétimo durante os anos Möise e o seu substituto, Ariel Henry, neurocirurgião, ainda não tomou posse. Möise governava por decreto há mais de um ano e deixou passar o calendário de eleição presidencial, pelo que era, na prática, um ditador.

A presente situação data da eleição de Michel Martelly em 2011, com uma deterioração geral da segurança. Serviços básicos nunca houve, ou o pouco que havia desapareceu no terramoto de 2010. Martelly aguentou e reprimiu diversas revoltas e conseguiu terminar o mandato, passado a presidência para Möise, em 2015.

Moïse era precisamente um dos envolvidos no escândalo dos dinheiros internacionais. Exportador de banana, teria emitido facturas falsas para cobrir desvios do dinheiro enviado pelas Nações Unidas. A eleição foi complicadíssima, tanto que ele só tomou posse 14 meses depois de eleito.

A oposição nunca levou a sua vitória a bem, o que provocou uma paralisação dos serviços públicos, mesmo a tempo para a chegada da pandemia de covid-19. Aliás, o Haiti é o único país do mundo com zero vacinados, depois de ter recusado a oferta de AstraZeneca dentro do programa Covax, alegando que não era segura. (Por favor, não ria. Isto é um dramalhão sem espaço para humor.)

É interessante notar que o Haiti foi o primeiro país da América Central a conquistar a independência, em 1804, quando os escravos se revoltaram, derrotaram as tropas enviadas por Napoleão e massacraram todos os colonos que os exploravam sem dó. Mas, ao contrário de outros países que mais tarde também conseguiram tornar-se independentes, não havia uma classe média para substituir os senhores franceses. O herói da resistência, Toussaint Louverture (os haitianos costumam ter nomes que parecem inspirados no Astérix), morreu em França numa cela após ser capturado. Quem conseguiu a vitória final foi o seu lugar-tenente, Jacques Dessalines, mas, como retaliação, a França e a Europa colocaram o país na lista negra, exigindo compensação às famílias dos colonos que tinham escapado. Durante 60 anos o país permaneceu isolado na sua miséria e ignorância, sem quadros nem maneira de os arranjar. Até ao princípio do século XX, houve 20 presidentes, sendo 16 depostos ou assassinados. Finalmente, em 1915, chegaram os norte-americanos, que governaram directa ou indirectamente até 1946, quando permitiram a eleição do primeiro presidente negro, Dusmarsais Estimé.

Mais agitação, até surgir o primeiro populista moderno, François Duvalier, eleito em 1957, e que governou com mão de ferro. Com os seus famigerados tontons macoutes [uma milícia], Papa Doc, como era conhecido, manteve-se vitaliciamente e passou o saque para o filho, conhecido como Baby Doc, em 1971. Mas o Baby era sobretudo um menino mimado, educado na Suíça (sim, educado na Suíça) e não soube lidar com a violência necessária para manter o poder, embora se esforçasse bastante. Exilou-se em França em 1986, quando a situação se tornou insustentável.

Para encurtar uma longa e dolorosa história, em 1994, os norte-americanos mandaram tropas e impuseram o padre salesiano Jean-Bertrand Aristide, que se aguentou até 2004. Levado quase à força pelos marines, Aristide exilou-se na África do Sul. As Nações Unidas criaram uma Missão para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH), constituída por militares de vários países e comandada pelos brasileiros. Em 2010, aconteceu o terramoto.

Entretanto, muitos haitianos tinham emigrado para os Estados Unidos, sobretudo aquando da grande fome da década de 1980. Lá conheceram duas instituições muito específicas, a violência armada e os gangs de narcotráfico. Muitos acabaram por voltar e nos últimos anos a violência no país tem passado rapidamente da política para o gangsterismo. Regularmente são assinados estrangeiros das ONGs que ainda insistem em ajudar e a violência entre grupos armados, que incluem militares, não pára de crescer. Por exemplo, em 2 de Julho, 20 pessoas foram assassinadas numa acção dos principais gangs do país, G-9, Fanmi e Alie, ou mesmo de um corpo ilegal da polícia, o Fantom 509.

Neste contexto, não se sabe realmente porque foi assassinado Möise. Parece que as motivações políticas não são a maior probabilidade, embora não lhe faltassem adversários. Mas já se sabe que o grupo que assaltou a sua casa tinha treino militar e pelo menos dois eram norte-americanos de origem haitiana. Bocchit Edmond, o embaixador norte-americano, disse que o ataque foi conduzido por mercenários estrangeiros e assassinos profissionais, e muito bem organizado.

O jornalista Jonathan Katz, citado pela Associated Press, afirma que "não sabemos quais são os seus objectivos, uma vez que Möise tinha uma longa lista de inimigos. Havia muita gente que o queria matar. E também muita gente que ele gostaria de eliminar".

Os gangues no Haiti são cada vez mais poderosos. A título de exemplo, Jimmy Sheizier, conhecido como Barbecue, no mês passado fez um pronunciamento, que foi parar às páginas do New York Times, em que diz: "É o nosso dinheiro que está nos bancos, nas lojas, nos supermercados e nos revendedores. Vamos buscar o que nos pertence de direito!".

Parece discurso de esquerda, mas não é. No Haiti, onde a ajuda norte-americana foi substituída pela da Nicarágua quando os yankees se passaram a interessar por outras regiões, não há esquerda nem direita. Uns estão no poder, os outros são contra eles. Nem se põe a questão dum discurso político.

Aliás, por falar em política, o país tem duas constituições, uma de 1987 e outra de 2012. A segunda, que estava em vigor até à sua morte, permitiu a Möise governar à vontade durante quatro anos. Agora, há quem queira voltar à de 1987, com mais seguranças democráticas. Fará alguma diferença?

Na quarta-feira, Joseph deu uma conferência de imprensa, rodeado por militares todos engalanados, em que garantiu que o seu lugar foi aprovado pelo “Nucleo Duro” (Core Group), a coligação de embaixadores das Nações Unidas, Estados Unidos, Canadá, França, Alemanha, Espanha, União Europeia e Organização dos Estados Americanos que de facto fiscaliza o que se passa no país. Não se pode dizer que controle, porque o Haiti é verdadeiramente incontrolável, mas pelo menos tenta manter a aparência das instituições normais do aparelho de Estado, cada vez mais fátuas. Em 2017, o Núcleo apoiou Möise, porque julgava que ele tinha alguma hipótese de impor a ordem, mas depois desistiu dele, ao ver que era apenas mais do mesmo.

Seria fácil considerar a interferência estrangeira, seja ela francesa (ao início), norte-americana (desde sempre) ou venezuelana (nos últimos anos) como a culpada pelo estado indigente em que vive o Haiti. Mas este é um caso em que os chavões tradicionais da esquerda ou da direita não se aplicam. Os próprios haitianos não se governam, nem se deixam governar,

No fundo, o próximo presidente tanto pode ser Claude Joseph, possivelmente candidato a ditador, como Jimmy Shrizier, o Barbecue. São todos do mesmo calibre.