Hoje, sem grandes possibilidades de sair dos nossos apertados municípios, convido quem tiver vindo ter a esta crónica a viajar pela imaginação. Para compensar o confinamento, vamos bem longe. Vamos a Tóquio! Aterremos numa rua qualquer, desde que tenha uma livraria. Olhemos para os livros na montra. Repare nas capas. Não nota nada de estranho? 

Estou certo de que sim. Mas já lá vamos. Primeiro, gostava de falar das palavras de origem portuguesa que esses livros escondem. Que palavras viajaram destas praias atlânticas até essas ilhas longínquas do Pacífico? 

Comecemos por uma palavra que não fez essa viagem... Corre por aí o boato que a famosíssima palavra japonesa «arigato» vem do nosso «obrigado». O problema é que os registos do uso de «arigato» são mais antigos do que os registos do uso da nossa palavra com este sentido. O «obrigado» com sentido de agradecimento não é assim tão antigo... As duas palavras parecem partilhar um som vagamente parecido, mas terá sido uma coincidência. Com 7000 línguas diferentes e bocas que não são assim tão diferentes, é normal haver no mundo muitas coincidências linguísticas.

Mas não fiquemos tristes. Há outras palavras japonesas roubadas ao português! Já que está à frente duma livraria, a olhar para a montra, toque na montra. Sim, no vidro. Uma das palavras japonesas para vidro é ビードロ («biidoro»). 

A palavra «biidoro» é de origem portuguesa, mas, actualmente, é considerada um arcaísmo. A palavra mais habitual é ガラス («garasu»), que veio do holandês «glas». Os holandeses sempre andaram atrás de nós por esses mares fora...

Também feito de vidro e também de origem portuguesa é a palavra que significa «frasco»: フラスコ («furasuko»). Continuando ainda com objectos, temos o nosso «botão» a transformar-se na palavra japonesa ボタン («botan»).

Olhando para a mesa, temos o alimento por excelência, o «pão»: パン («pan»).

Por fim, uma surpresa. Veio da nossa língua a palavra japonesa que significa «Reino Unido»: イギリス («igirisu»). Claro que a palavra não vem nem do «Reino» nem do «Unido», mas da nossa palavra para «inglês». 

Há mais uma quantas palavras de origem portuguesa nessa língua distante, mas, por hoje, chega. Gostava que reparasse, de novo, nos livros que está a ver na montra da livraria de Tóquio onde fomos cair. Os caracteres na capa são bem diferentes dos nossos, mas há algo ainda mais curioso: muitas das capas estão ao contrário. Enfim, estão ao contrário em comparação com as nossas... Os livros japoneses têm, em geral, a lombada à direita. 

Mas porquê? Porque a direcção da escrita não é a mesma que a nossa. Ou melhor, não é nos livros. Se formos a uma página de Internet, vemos que os japoneses também escrevem da esquerda para a direita, como nós. Mas, nos livros, não é bem assim. 

Então é como? Se abrirmos um livro japonês, veremos que o texto não está nem da esquerda para a direita, nem da direita para a esquerda — mas de cima para baixo... E, já agora, a primeira coluna a ler é a da direita.

As diferenças entre culturas são assim: há aspectos que são imutáveis numa cultura, mas que são opcionais noutra. A direcção da escrita parece-nos ser uma decisão primordial, que pode ser diferente de cultura para cultura, mas não deve variar internamente. Por cá, é mesmo assim: ninguém se lembra de começar a escrever português de cima para baixo. Mas, no Japão, a direcção varia. As regras de cada língua não são como o código da estrada, em que cada país decide se a condução é pela esquerda ou pela direita — e pronto. A mistura pode ser, digamos assim, incómoda (ou mesmo fatal). Mas na linguagem humana, não há acidentes de viação só porque temos diferentes opções. Cada língua tem aspectos opcionais e outros que parecem regras imutáveis. O que cai dentro de cada saco varia de língua para língua. No caso do japonês, a direcção da escrita é uma opção.

Pois é: mesmo nesses livros em que a capa parece estar ao contrário e a escrita cai de cima para baixo, como a chuva, encontramos algumas palavras que foram para lá levadas por bocas portuguesas. As línguas também são assim: mesmo entre línguas tão diferentes, há sempre palavras que partem à aventura e arranjam uma nova vida dentro de gramáticas distantes.


Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é Pontuação em Português.