A sabedoria popular está pejada de provérbios e ladainhas usadas para explicar o mundo de maneira simples. Longe de serem leis universais ou universalizáveis contêm, ainda assim, algum fundo de verdade. Tenho um especial carinho por estes ditos, metáforas da experiência humana, passadas de geração em geração quando a realidade se explicava e aprendia boca a boca.

Atentem neste: “A mesma água nunca passa duas vezes por debaixo da mesma ponte”. Remete-nos para a ideia de continuidade da vida, da alteração constante das circunstâncias e dos elementos que a compõem e influenciam. De evolução. Dá-se o caso de não ser verdadeira. Pelo menos na região banhada pelo meu rio Lena até se encontrar com o seu rio Lis, há água que teima em querer fluir vezes e vezes debaixo das mesmas pontes. Falo-vos de autarcas, moléculas fundamentais do Poder democrático Local. Este domingo, voltamos a votos para Câmaras, Assembleias Municipais e Juntas de Freguesia e alguns candidatos são, para desespero de tanta gente, águas passadas. Ainda assim, insistem – direito legal e legítimo, que fique claro – ser as únicas nascentes de força criativa e dinamismo, mesmo que tenham passado parte da vida nesse papel.

À boleia dos nossos rios, sigamos o curso do Lena, que nasce em Porto de Mós, percorre a Batalha e se junta ao Lis, em Leiria. Em Porto de Mós, João Salgueiro é o candidato do Partido Socialista (PS) e quer recuperar o lugar que deixou há quatro anos, de onde foi obrigado a sair pela lei de limitação de mandatos, depois de uma dúzia a governar. Nesta campanha, tem-se apresentado como a solução milagrosa para os problemas do concelho; diz que as pessoas lhe pediam para voltar – qual Messias –; que tudo parou, está estagnado e é ele a solução para a Vila Forte sair do marasmo. Ora, Salgueiro, que até tem nome de nobre árvore ribeirinha, está mais perto de ser jacinto-de-água, invasora que tudo abafa e domina, que uma qualquer espécie do género Salix, usadas para estabilizar terrenos, combater a erosão, fazer cestaria ou marcenaria e de cuja casca se retira a salicina, origem do mais famoso analgésico, antipirético e anti-inflamatório do mundo, a aspirina. Foi presidente da autarquia, pelo PS, entre 2005-2017. Mas, antes disso, entre 1993-2005, foi vice-presidente da câmara, com o importante pelouro das Obras Particulares (Urbanismo) de executivos do Partido Social Democrata (PSD). Em 2005, deu uma “facada nas costas” ao seu anterior número um, José Ferreira, e, nessa altura, fazia já de conta que nada do que havia a criticar em Porto de Mós tinha que ver com ele. O facto é que, desde 1986, Salgueiro ocupa cargos políticos no município, tendo sido deputado da Assembleia Municipal e vereador. Sempre com as cores laranjas. Até virar rosa.

Em 2021, passados quatro anos de interregno, vem à luta do que acha seu por direito, a Presidência. O PS apoia-o, porque quer reconquistar uma autarquia que só foi rosa enquanto Salgueiro foi chefe. E no horizonte planeia-se a sucessão dinástica. Um dos seus filhos, David, é candidato a presidente da Freguesia portomosense das Pedreiras (onde o clã Salgueiro habita), presidente da concelhia do PS e, em 2019, foi o 1.º suplente na lista dos socialistas do distrito de Leiria para as eleições legislativas. O caminho, comentado nos cafés locais mais à boca aberta que fechada, será o de garantir que, mais tarde ou mais cedo, o filho suceda ao pai, caso este regresse à autarquia. Veremos como a coisa corre, mas as ambições políticas de David Salgueiro são evidentes. E tem apoios de peso. António Lacerda Sales, secretário de Estado Adjunto e da Saúde (número três por Leiria, eleito como deputado nas Legislativas de 2019, repescado para o Governo em setembro do ano passado) dá a cara pelo candidato e garante que os cidadãos teriam “um grande presidente de junta" e “melhor qualidade de vida”. Na última votação para o Parlamento, Salgueiro filho fez campanha ativa por Raul Castro, presidente da Câmara Municipal de Leiria, que abandonou o cargo a meio do mandato – sendo substituído pelo vice-presidente, Gonçalo Lopes – para concorrer à Assembleia da República como cabeça de lista dos socialistas do distrito.

A história de Raul Miguel Castro começa a montante da cidade do Lis, na vizinha vila da Batalha, que o Lena também atravessa, já mais caudaloso, contudo também mais indolente. Raul Castro foi presidente desta autarquia, pelo Centro Democrático e Social/Partido Popular (CDS/PP), entre 1989 e 1997. O substituto, nos 16 anos seguintes, foi o seu antigo vereador, vice-presidente e braço-direito António Lucas, aí, já pelas cores laranjas. Em 2009, Castro – que é natural de Abrantes e vive no concelho da Batalha – sentindo o apelo do Poder, atirou-se a outras correntes. Todo o pequeno rio vai crescendo, ganhando espaço e torrente e, mesmo sendo afluente, um dia torna-se grande, curso principal. O Lena já não bastava, era preciso dominar o Lis. Concorreu a Leiria como “independente pelo PS” e conquistou a capital de distrito ao PSD. Teve uma vitória histórica e por lá ficou, até 2019. A meio desse derradeiro mandato, quis fluir ainda mais. Deixou a Câmara, concorreu ao Parlamento e novamente triunfou. Mas, ou a vida não lhe corre bem ou os ares da capital não lhe agradam, Castro quer regressar a margens mais familiares. Talvez as correntes do Tejo sejam mais turbulentas que as do modesto Lena. Nestas eleições, nem pelo CDS/PP, nem pelo PS: apresenta-se, sim, como número um do grupo de cidadãos eleitores “Batalha é de Todos”, no qual o seu eterno braço-direito, António Lucas, é o mandatário da campanha. A justificação da candidatura é parecida com a do "camarada" de partido, em Porto de Mós: o povo pediu, os empresários clamaram, as forças vivas desejam o seu regresso. Ah, o seu grupo de “independentes” tem o apoio do PS, que não apresentou lista própria à Batalha. Se ganhar, Castro deixa de vez o Parlamento (algo que esta candidatura mostra é que já não está lá, de facto) e assume os destinos da autarquia. Mas, se perder, a cadeira em São Bento continua sua: já disse que não assumirá o lugar de vereador porque não lhe entregarão pelouros. Quase aposto que João Salgueiro, em Porto de Mós, fará o mesmo.

Aqui chegados, está bom de ver que algumas águas do Poder Local não só passam uma vez debaixo da ponte, como querem continuar a passar sempre, num sistema hidráulico fechado, que lhes garanta a ocupação permanente do leito democrático e cidadão. Este domingo, Portomosenses e Batalhenses farão as suas escolhas. E o que me ocorre, à laia de dito popular, é isto: “Água de lagoa nunca é boa”.
Há alternativas.