Como tem sido amplamente noticiado, no próximo dia 2 de Outubro o Brasil vai a eleições. Embora se fale sobretudo das presidenciais, o eleitorado, cujo voto é obrigatório, vai escolher todos os cargos electivos a nível nacional, estadual e distrital – presidente, senadores (27 de um total de 81) deputados federais e estaduais e ainda governadores. Uma mega-operação que envolve milhares de candidatos, facilitada pelo voto electrónico desde 1996. (O primeiro país do mundo consolidar o sistema.)

Actualmente há 32 partidos, tantos que lhes foi atribuído um número nos boletins, assim como um número para os candidatos individuais, evitando o risco dos eleitores, muitos pouco alfabetizados, se confundirem. O número de partidos é uma constante variável, uma vez que se fundem, separam e associam, além de surgirem novas “siglas” ao sabor do clima político e dos interesses da altura. Há-os de todas as ideologias, da extrema-esquerda à extrema-direita, além de alguns de ideologia difícil de definir pelas divisões tradicionais.

Além dos partidos propriamente ditos e das suas alianças, há que contar, no caso do Congresso e Senado federais, com as chamadas “bancadas” – grupos de interesses que abrangem vários partidos e não têm existência oficial, mas cujos eleitos votam em bloco. A mais conhecida – e mais eficiente – é a bancada evangélica, que reune os fiéis das várias igrejas cristãs não católicas. Não é por acaso que até hoje o país não legalizou o casamento homossexual e a interrupção voluntária da gravidez, embora se calcule que os abortos andem entre um e quatro milhões anualmente.

Nestas eleições enfrentam-se, grosso modo, dois conceitos políticos/religiosos/civilizacionais opostos, um representado pelo Partido dos Trabalhadores, PT e o outro pelo chamado Centrão, uma coligação de três partidos, Liberal, Progressistas e Republicanos.

Embora o Centrão diga que o PT e seus aliados são comunistas, e o PT diga que Bolsonaro é fascista, há que ter em conta, numa análise mais fria (o que é impossível, no Brasil de hoje), que o que está em jogo não são ideologias, mas interesses.

Para já, em termos precisos do que significa comunismo e fascismo, nenhuma das duas ideologias seria possível de vingar, qualquer que seja o vencedor presidencial de 2 de Outubro. O PT, embora apoiado por toda a esquerda, inclusive os leninistas, trotskistas, fidelistas e outros istas, não propõe um programa marxista, nem o tentou executar quando esteve no poder, entre 2002 e 2016. Embora usasse uma retórica de esquerda radical e ajudasse países comunistas, como Cuba e Venezuela (entre outros países que na altura tinham governos dessa tendência), na verdade as suas políticas podem ser consideradas mais como social-democratas ou socialistas moderadas. Chegou a ter milícias armadas – o Movimento dos Sem-Terra – e mostrou-se complacente com as vertentes mais radicais, mas em geral teve um comportamento simbiótico com os capitalistas, graças à corrupção institucionalizada (mais sobre isto logo a seguir.)

Quanto a Bolsonaro, só poderia impôr um estado fascista se tivesse o apoio das Forças Armadas, que não tem (também veremos isto mais adiante.) O modelo mais próximo que o actual presidente poderia tentar seria uma República Teocrática. Contudo, embora os evangélicos sejam uma força pujante, dificilmente conseguiriam ir mais além do que já têm, dado que os brasileiros, mesmo profundamente religiosos e até violentos, também são libertinos e anárquicos, “doces” e românticos, dificilmente aceitando um “modelo iraniano”, digamos.

O grande problema do Brasil, numa só palavra, é a corrupção. Normalmente, a corrupção tem um sentido pejorativo, como uma troca de favores pecuniários, e é um fenómeno parasitário em todos os países – mais nuns do que noutros, mas universal. Ora, no Brasil a corrupção não é uma aberração do sistema; é o sistema. Ou seja, a compra de interesses e troca de favores existe a todos os níveis, institucionais e privados, sempre existiu, e não se vê que possa deixar de existir, ou mesmo ser reduzida. Qualquer pessoa sabe (e eu vivi lá dez anos) que para se conseguir avançar com uma necessidade, desde resolver uma questão administrativa até obter tratamento expedito num negócio, é precisa pagar “luvas” à pessoa que decide. Quando se pretende alguma coisa – qualquer coisa – a pergunta não é “quando?”, mas sim “quanto?” Isto é válido para todos os escalões da sociedade, do mais baixo – digamos, conseguir um canalizador imediatamente – ao mais alto – aprovar uma lei favorável, estadual ou federal. 

Ademar de Barros, que foi Governador de São Paulo várias vezes entre as décadas de 1930 e 1960, tinha o slogan “Rouba, mas faz!”. Isso não o impediu de ganhar quatro eleições.

Claro que, como norma, todos os candidatos a qualquer lugar são contra a corrupção. Lula da Silva (que entrevistei quando ainda era líder sindical), na campanha eleitoral de 2002 fez um famoso discurso em que prometeu acabar com a miséria, a fome e, lá está, a corrupção. Bolsonaro também fez a mesma promessa – todos fazem. No entanto, é sabido que no Governo Lula a corrupção atingiu níveis estratosféricos – conseguiram até estourar com a Petrobrás, uma das maiores petrolíferas mundiais. Do Governo Bolsonaro ainda não se sabe muito, mas vários indícios mostram que ele e os seus filhos têm “negócios” duvidosos. O presidente admitiu publicamente que existe corrupção no governo. Até na compra de vacinas contra a Covid, uma necessidade vital para o país, se descobriu um esquema de “propinas”. (“Propina” é o termo brasileiro para as nossas “luvas”.)

Agora, a questão, sempre levantada pela esquerda, de que Bolsonaro quer tornar-se um ditador. Para isso teria de ter o apoio dos militares num golpe de Estado, uma vez que o sistema político brasileiro, com todos os seus defeitos, mantém as instituições democráticas. 

Bolsonaro foi militar, tendo sido exonerado do Exército com a patente de capitão em 1988, pelo seu comportamento truculento e pouco obediente. Sempre, desde o início da candidatura e já como presidente, defendeu a Ditadura Militar de 1964 e os torturadores desse regime, que durou até 1985. Afirmou, até, que foi uma época dourada e que gostaria de instaurá-la de novo. Mas não é isso que pensam as Forças Armadas. Quando saíram do poder, fizeram-no por vontade própria e entregaram pacificamente o país a um regime democrático. Em múltiplas declarações têm indicado que acham que a Ditadura foi um erro e que não apoiariam outra. Embora haja militares no círculo do actual presidente, os comandos têm-se mostrado muito cuidadosos quanto a afirmações radicais e apenas declaram que só interviriam em caso de guerra civil – não para tomar um partido, mas para acabar com a violência. Além disso, embora Bolsonaro se vanglorie de ter sido militar, não é bem visto pela instituição que o exonerou. 

O Presidente sabe isso e tem dirigido as suas intenções golpistas, caso perca, para uma atitude semelhante à de Trump, o seu ídolo declarado. Ou seja, tentará impugnar as eleições. Para tal já começou a criticar as urnas electrónicas, o que tem caído mal nas instituições da República. Tanto o Supremo Tribunal Federal como parlamentares, políticos e empresários, apressam-se sempre a responder às suas provocações com o argumento que, desde 1996 não há casos conhecidos de fraude.

Claro que há grupos de empresários ultra-bolsonaristas que também defendem um golpe de Estado. Disseminam notícias falsas, ataques à imprensa e muita homofobia. Marconi Souza, dono da Valeshop, partilhou um texto associando o jornalista inglês Dom Philips, assassinado na Amazónia, a uma conspiração não identificada “que a esquerda mundial, o PT, PSOL e a mídia farão de tudo para desviar a atenção”. Marco Aurélio Raymundo, o Morongo, médico, dono da marca de surfwear Mormaii, afirmou que as vacinas eram “venenosas”. O ex-governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB), homossexual assumido, é um alvo frequente do grupo.

Mas estes radicais são uma notória minoria. Mais perigosos serão os evangélicos, que nos seus púlpitos tentam assustar os fiéis com o que seria o governo de “ateus marxistas” de Lula da Silva. Mas Lula é declaradamente católico e tem tido o cuidado de não hostilizar as seitas religiosas – as mais importantes somam cerca de 15 milhões de fieis. (Todas têm sucursais em Portugal). A mais importante, a Igreja Universal do Reino de Deus, até tem milícias próprias, os Gladiadores do Altar, oficialmente desarmados, mas que, dadas as leis permissivas de Bolsonaro quanto ao uso do porte de arma, não surpreenderia se estivessem preparados para acções para-militares.

Então, qual é o cenário mais provável para as eleições de 2 de Outubro? As sondagens constantes dão também resultados constantes: Lula vai ganhar, se não no primeiro turno, certamente no segundo. 

Bolsonaro provavelmente tentará impugnar o resultado com o argumento de fraude nas urnas, mas é provável que, tal como Trump, não consiga provas concludentes.

Na minha opinião, que é apenas minha e se baseia no bom-senso, poderá haver aquilo a que chamamos uma “guerra civil de baixa intensidade” – ou seja distúrbios provocados pelos bolsonaristas, eventuais trocas de tiros e violência nos centros urbanos, manifestações musculadas, assaltos a lojas, mortos e feridos. Mas a agitação não durará muito.

Resta saber se Lula da Silva aprendeu com os erros passados e vai ser mais cuidadoso. Os seus governos anteriores foram muito benéficos para os mais pobres e palatáveis para os mais ricos. A corrupção não acaba, evidentemente, mas talvez fique nos níveis históricos do país, que nunca impediram a “Ordem e Progresso” expressa na bandeira nacional. Uma ordem relativa e um progresso lento, porém inexorável, dada a enorme riqueza do Brasil.

Tenho dúvidas, mas tenho mais esperanças.