Das mulheres em geral, das mulheres no mundo, das mulheres na política, nos negócios, nas artes … e nos olímpicos. Os Jogos do Rio têm batido alguns recordes de imbecilidade no que respeita à forma como as mulheres são referidas. Os comentadores da NBC, estação host do evento nos Estados Unidos, têm conquistado medalhas atrás de medalhas e o exemplo foi logo dado no dia do arranque da prova.
Um tal de John Miller, responsável pelo marketing da estação, explicou que a cerimónia de abertura dos Jogos não seria exibida em directo … por causa das mulheres. Porque os estudos de audiência mostravam, explicou, que há mais mulheres que homens a assistir aos Olímpicos e o sexo fraco é menos interessado nos resultados e mais interessado na narrativa. Ou seja, o que as mulheres querem mesmo é uma mistura de reality show com mini-série e a NBC preparou-se para servir esse menu. Claro que o facto de ter vendido 1,2 mil milhões de dólares de publicidade e de ser mais fácil colocar anúncios em olímpicos cortados às postas não teve nada a ver com essa opção – estes senhores são uns gentlemen, apenas querem agradar às senhoras.
Correu mal.
A NBC registou o pior resultado de audiência desde 1992. Com tantos estudos e uma preocupação tão esmerada com o público feminino, não se percebe. Mas também já se sabe, as mulheres são temperamentais. Se calhar, naquele dia, deu-lhes para ir às compras.
Depois deste arranque, houve já todo um desfile de comentários sobre várias atletas em várias modalidades.
A nadadora húngara Katinka Hosszu ganhou a medalha de ouro nos 400 metros individuais e bateu um recorde mundial. É chamada a dama de ferro. Mas nos ecrãs americanos o grande plano foi para o marido e treinador, Shane Tusup, o grande responsável pela sua vitória, segundo o comentador da NBC, Dan Hicks. Talvez algumas mulheres não se importem de ser troféu de maridos, namorados, treinadores e por aí fora – mas importam-se de pelo menos assumir que outras têm vida e mérito próprio?
Não fica por aqui.
Corey Cogdell-Unrein conquistou, nestes Jogos do Rio, a segunda medalha de bronze no tiro ao alvo. Dir-se-ia que dificilmente poderia ser chamada por outro nome que não o próprio. A não ser para o Chicago Tribune para quem o papel principal de Corey, mesmo quando se torna uma medalhada olímpica, é ser a mulher de um jogador dos Chicago Bears, cujo nome deliberadamente nem vou referir, não porque tenha culpa, mas porque simplesmente não é necessário.
A invisibilidade das mulheres ficou igualmente patente na entrevista que Andy Murray deu ao veterano John Inverdale depois de ter ganho, no domingo passado, a medalha de ouro no torneio de ténis. Inverdale que é um histórico dos eventos desportivos, um dos rostos da BBC, teve de ser lembrado pelo tenista britânico que não era dele o primeiro feito olímpico de conquistar duas medalhas de ouro – antes já as irmãs Venus e Serena Williams tinham conquistado quatro.
E, depois, claro, há Simone Biles. O prodígio destes jogos olímpicos. Uma gigante com menos de um metro e meio que só por ela já fez valer a pena ter havido um evento chamado Jogos do Rio. Um manifesto exagero, sim, mas porque qualquer tributo escrito que se faça ficará aquém do talento e das qualidades que esta miúda de 19 anos demonstrou.
Vamos dizer que a NBC também não deixou os seus créditos por mãos alheias no que respeita a Simone Biles. A começar pelo spot promocional dos olímpicos em que usava uma conversa dos pais da ginasta sobre o quanto ela gosta de ir às compras. Além de gostar de ir às compras, Simone também arranja as unhas – segue-se imagem com a atleta na manicure. É uma menina, percebem? Ou uma gaja, como passarão a dizer logo que deixe de ter um ar ainda infantil. O desporto, a performance, a incrível elegância e destreza demonstrada enquanto ginasta, isso vem depois – lembrem-se, às mulheres interessa menos os resultados e mais a narrativa.
Aliás, terá sido também a pensar na narrativa que a mesma NBC promoveu um encontro surpresa entre a equipa de ginastas americanas, em que se inclui Biles, e o actor Zac Efron, um ídolo da geração de Biles que cresceu a ver o High School Musical. Efron espetou com uma valente beijoca na bochecha de Simone, ela sorriu, a história foi para o Snapchat, escreveram-se linhas de coisa nenhuma em vários sites e redes. Arthur Nory Mariano, o atleta olímpico que Simone apelida carinhosamente de "namorado brasileiro", foi ao Instagram dizer que ela é a miúda dele, e isto deu matéria para muito comentário e partilha. Aposto que sobretudo feminino, claro.
As mulheres gostam de narrativas, lembrem-se disso.
E é no meio disto tudo que a miúda Simone dá uma entrevista e diz apenas: "Não sou o próximo Usain Bolt ou Michael Phelps. Sou a primeira Simone Biles".
Por cá, andamos a discutir o conselho de administração da Caixa Geral de Depósitos. Uma missão grandiosa para a qual o Governo convocou 19 administradores. O BCE chumbou 8. Sobram 11. Nenhum é uma mulher. Mas em 2018, a Caixa terá no mínimo três mulheres no Conselho de Administração. Não é uma, não são dez. Porquê? Porque o Banco Central Europeu exige. Não se vá pensar que, por absurdo, seria porque há tantas mulheres qualificadas para gerir um banco como um homem.
Tenham um bom fim-de-semana.
Outras sugestões
Aqui pela redacção do SAPO24 andamos fãs deste podcast. E o primeiro episódio é a perfeita sugestão para o tema da crónica de hoje. Chama-se "The Lady Vanishes" e pode ser ouvido em Revisionist History, o podcast de Malcolm Gladwell.
E hoje é Dia Mundial da Fotografia, pelo que propomos uma volta ao mundo da imagem, também pelo fio condutor da História. Pode ser lida aqui, num artigo que revisitamos.
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