O que acontece na Administração de Donald Trump é objecto de escrutínio diário, a um nível inédito na política norte-americana. Além do que se vê e sabe diariamente, há relatos pormenorizados de jornalistas especializados – caso de Michael Wolff, que publicou “Fire and Fury”, uma investigação de mais de um ano da vida na Casa Branca – e de ex-assessores do Presidente, como Omarosa Manigault, que também escreveu um livro sobre os seus dias no círculo do poder, “Unhinged” (“Desvairado”). E outros assessores, com passagens mais ou menos rápidas pelo círculo próximo de Trump, como Anthony Scaramucci, dão entrevistas constantes a contar pormenores rocambolescos.

É neste contexto que saiu no passado dia 11 o livro de Bob Woodward, “Fear”. Woodward não é um jornalista qualquer; depois da sua histórica cobertura do caso Watergate (juntamente com Carl Bernstein) no “Washington Post”, que levou à queda de Nixon, escreveu 18 livros, dos quais nove são biografias presidenciais. Recebeu dois prémios Pulitzer (o mais alto galardão do jornalismo norte-americano) e é considerado um ícone da profissão, com uma reputação impecável. Portanto o seu livro tem uma credibilidade particularmente danosa para Donald Trump – não em termos da sua política, mas da maneira errática e temperamental como a põe em prática.

Por coincidência, na véspera da saída do livro, o “The New York Times” publicou um editorial de opinião anónimo - uma raridade - escrito por um alto assessor de Trump, que confirma o relato de Woodward. Tanto o livro como o editorial transmitem as lamentações dos conservadores que, concordando com a agenda política de Trump, não conseguem aceitar o homem. Haverá uma parte do Partido Republicano que o tolera apenas porque permite ao partido avançar com a sua agenda legislativa.

As únicas críticas que Woodward tem recebido são pela minúcia excessiva das suas investigações, nunca pela credibilidade. A escritora Joan Didion, na “New York Review of Books” diz que ele colecciona pilhas de material irrelevante, mas não tira conclusões nem faz juízos de valor. Mas Woodward considera que essa imparcialidade, apoiada em testemunhos gravados das suas fontes, é o modus operandi correcto do jornalismo. A sua postura pode ser vista numa entrevista que deu há poucos dias ao site “92nd Street”.

Um presidente "profundamente defeituoso", "um mentiroso congénito”

Mas, tendo a paciência de ler “Fear” (são 357 páginas), fica-se com uma impressão muito precisa do que se passa na Casa Branca. Os jornalistas americanos, que receberam o livro antes do lançamento, já o resumiram devidamente: Dwight Garner, no “The New York Times” escreve: “Se este livro tem um argumento principal a assimilar, é que o Presidente dos Estados Unidos é um mentiroso congénito”.

Susan Glasser, no “The New Yorker”, afirma que Woodward escreveu não apenas a história de um presidente “profundamente defeituoso” mas também um relato sobre como aqueles que o rodeiam decidiram lidar com a situação”.

créditos: EPA/TASOS KATOPODIS

Dada a extensão do livro, mesmo condensá-lo seria demasiado longo e entediante. Afinal, a maioria do que Woodward conta já é sabido; ele apenas confirma com o seu estatuto situações do domínio público. Não há nenhuma “revelação” escandalosa; apenas a sistematização meticulosa de histórias conhecidas. Limitamo-nos assim a condensar cerca de 20% do conteúdo. Quem quiser saber tudo, terá de comprar o livro original ou uma tradução portuguesa que, presumivelmente, chegará às livrarias em Novembro.

No prólogo Woodward conta que ouviu muitos testemunhos não em off – o que quer dizer  que não podem ser citados, mas sob uma outra condição, chamada de “deep background” em inglês, que significa que serão citados, mas sem o nome revelado. Assim o jornalista pode garantir a veracidade dos relatos, todos gravados e confirmados por “notas de reuniões, diários e arquivos pessoais e documentos governamentais”. O método de Woodward, que funciona sobretudo pela sua reputação, é descrito em pormenor numa entrevista de Steven Colbert.

"Um esgotamento nervoso no poder executivo do país mais poderoso do mundo”

O relato começa com o que Woodward chama de “golpe de Estado administrativo”: o ex-assessor económico de Trump, Gary Cohn,“1,90m, careca, prepotente e cheio de autoconfiança”, decidiu roubar documentos-chave da secretária da Sala Oval, de modo a impedir o Presidente de cancelar o acordo de livre comércio com a Coreia do Sul, isto no Verão de 2017, quando a tensão subia com a Coreia do Norte. Entre as características do acordo, KORUS, essencial para a economia sul coreana, estava a possibilidade dos EUA detectarem lançamentos de mísseis nucleares norte-coreanos em sete segundos, a única maneira de os deter antes de atingirem os Estados Unidos. Trump queria terminar o KORUS por causa do défice comercial anual de 18 mil milhões de dólares com a Coreia do Sul e os gastos de 3,5 mil milhões anuais para manter tropas no país. Cohn disse mais tarde a um “associado” que não podia permitir que o Presidente visse o documento: “Temos de proteger o nosso país”. O desaparecimento das várias cópias do documento foi feito com a cumplicidade de Rob Porter, secretário da presidência - um posto discreto mas fundamental.

“Não se trata do que fazemos pelo país”, disse Cohn em privado, “trata-se de salvar o país do que ele possa fazer.”

Porter disse a Woodward que um terço do seu trabalho era “tentar responder a algumas das ideias perigosas de Trump e dar-lhe razões para acreditar que talvez não fossem assim tão boas”. Outras vezes tratava-se de atrasar decisões citando problemas legais, ou de confirmação (“veting”), o que acontecia dez vezes mais do que tirar papeis de cima da mesa. Porter sentia-se como se andasse permanentemente na borda dum precipício.

Cohn pediu ajuda ao General Mattis para explicar a Trump que precisavam da aliança com a Coreia do Sul: “A presença militar e os serviços de informação que temos na Coreia do Sul são a espinha dorsal da nossa capacidade de nos defendermos contra a Coreia do Norte.”

“Mas porque é que gastamos mil milhões por ano num sistema de mísseis antibalísticos na Coreia do Sul?” perguntou Trump.

“Não estamos a fazer isto pela Coreia do Sul”, respondeu Mattis. “Estamos a ajudá-los porque nos ajudam a nós”.

Escreve Woodward: “A realidade é que em 2017 os Estados Unidos estavam amarrados às afirmações e acções de um líder emocionalmente sobrecarregado, volátil e imprevisível. Os elementos da sua equipa tinham-se juntado para bloquear propositadamente o que acreditavam ser os seus impulsos mais perigosos. Havia um esgotamento nervoso no poder executivo do país mais poderoso do mundo”. E reproduz no livro o fac-simile do documento que Cohn escondeu de Trump.

“Gosto dessa ideia. Então eu sou um popularista!”. Quando Steve Bannon entra em cena

Em 2010, David Bossie, um investigador republicano e activista conservador que andava a investigar os escândalos  dos Clinton há mais de vinte anos, telefonou a Steve Bannon, na época produtor de vídeos radicais de direita. Disse-lhe para ir a Washington falar com Trump, porque ele estava a pensar em candidatar-se à presidência contra Barack Obama. “Não tenho tempo para punhetas”, respondeu Bannon, no seu estilo característico. “Não me interessa encontrar-me com ele. O tipo não é sério.” Nessa altura Trump fazia o programa “The Apprentice” um sucesso da NBC. Finalmente, Bannon acedeu a ir a Washington. Assistiu a uma conversa em que Bossie convenceu Trump, em cinco minutos, a ser pro-life (contra a IVG), porque nunca nenhum candidato republicano que fosse pro-choice tinha sido escolhido para as Presidenciais. Bannon apreciou o estilo directo e prático de Trump.  Também percebeu que Trump não sabia nada sobre o processo político, pois ficou surpreendido ao saber que havia registos (legais) de que tinha votado muito pouco, e que tinha doado muito mais dinheiro aos Democratas que aos Republicanos. Trump disse que doara mais aos Democratas porque eram eles que governavam Chicago e Atlantic City,  onde queria construir hotéis.

créditos: AFP PHOTO / DOMINICK REUTER

Bannon explicou-lhe que o populismo estava a crescer, porque o homem comum não gostava das elites e achava que o sistema era manipulado. “Gosto dessa ideia. Então eu sou um popularista!”, exclamou Trump. Por mais que o corrigisse, Bannon não conseguiu que ele dissesse “populista”.

Bossie explicou a Trump o que precisava para ser candidato, como por exemplo dar cheques a vários congressistas (senadores e representantes), como doações para a campanha deles. Depois da conversa, Bannon disse a Bossie que Trump nunca seguiria nenhuma das recomendações dele, especialmente passar cheques a políticos. “Trump não passa cheques, endossa-os.” E terminou: “Ele não tem hipótese nenhuma. Zero.” Isto aconteceu, recorde-se, em 2010.

A história passa para seis anos depois, na altura em que Trump já tinha sido escolhido como candidato à presidência pelo Partido Republicano. Steve Bannon, “agressivo, assertivo e vociferante”, entretanto tornara-se director do site de extrema-direita “Breitbart News”, sustentado pelos Mercer, pai e filha, uma família “nas franjas da politica” mas com muito dinheiro para divulgar as suas ideias, basicamente conservadorismo da escola clássica: governo mínimo, desregulação da economia, taxação baixa. Rebekah Mercer, a filha, aconselhou-o a meter-se na campanha, uma vez que o então director, Paul Manafort, era “um desastre”. E foi a própria Tebekah que convenceu Trump a contratá-lo.

Bannon ficou surpreendido com a falta de profissionalismo e desconexão que grassava na equipa de campanha de Trump. E a havia o problema de Manafort, que acaba de ser exposto publicamente por ter recebido 12,7 milhões de dólares de origens obscuras relacionados com o seu trabalho para o Governo pró-russo da Ucrânia.

É nesta altura do relato que aparece Reince Priebus, um homem chave do aparelho do Partido Republicano (director do chamado RNC, Comité Nacional Republicano, tal como o Partido Democrata tinha o seu DNC). Priebus, um advogado com grande experiência política, tinha dupla missão de garantir que o RNC apoiaria Trump e que Trump seguiria o enquadramento determinado pelo partido. Priebus controlava a base de dados dos filiados republicanos, uma ferramenta essencial para garantir que Trump teria o apoio das bases. Trump não tinha uma equipa que se visse, nem conhecimentos mínimos das manobras eleitorais necessárias, portanto precisava do aparelho do partido. Priebus tinha passado os últimos anos a transformar a base de dados numa arma eleitoral – segundo Woodward, o RNC gastou 175 milhões com essa operação, seguindo a metodologia que já tinha sido utilizada por Obama.

Priebus e Bannon começaram a trabalhar em conjunto, embora Trump publicamente dissesse que o RNC era uma “desgraça” e uma “vigarice” e que Priebus “devia ter vergonha”. Bannon percebeu que o candidato não estava minimamente interessado nas minudências duma campanha.

É nesta altura também que Kellyanne Conway surge no radar de Woodward, como uma das pessoas que tinha consciência da dissonância entre Trump e as bases do partido e que, juntamente com Bannon, percebia que a estratégia vencedora era Trump atacar Hillary Clinton e não defender-se. Em termos de eleitorado, havia a questão, comum a todas as eleições, dos “Estados chave” que era preciso garantir. Em termos dos debates, uma vez que Hillary era uma política muito experiente, o melhor era contar com a espontaneidade de Trump. Mas Bannon continuava a achar que Trump não tinha nenhuma hipótese de vencer.

"A espinhosa questão da interferência russa"

Woodward dedica um capítulo à espinhosa questão da interferência russa. Os primeiros sinais dessa operação encoberta para impulsionar Donald Trump e desfavorecer Hillary Clinton foram detectados pela Agência Nacional de Segurança, NSA, e pelo FBI, no Verão de 2015. James Clapper, Director Nacional de Informação, enviou a informação para Obama. A seguir, em Julho de 2016, os sites Wikileaks e DC Leaks começaram a publicar emails roubados dos servidores do DNC por operacionais russos.

A situação levantava uma questão ética complicada para Obama. Se tornasse pública as interferências nas eleições, parecia que estava a ajudar Clinton. Se nada dissesse, poderia ser acusado de ocultação duma situação de interesse público.

John O Brennan, director da CIA, era contra a divulgação, porque obrigaria a revelar fontes e o “mantra” da agência era de as proteger sempre.

Clapper informou o grupo chamado “Gang dos Oito” – quadro líderes de cada partido no Congresso — e ficou impressionado ao ver que as reacções foram mais partidárias do que patrióticas.

Finalmente Clapper e o Secretário da Segurança Interna, Jeh Johnson, vieram a público às três horas de 7 de Outubro, com um comunicado em que afirmavam a certeza de que as mais altas instâncias russas estavam a revelar emails de “pessoas e instituições” com o objectivo de interferir no resultado das eleições. A notícia era para causar um choque nacional, mas no mesmo dia, às quatro e cinco da tarde, o “The Washington Post” revelou a famosa gravação do canal NBC que ficou conhecida como “Access Hollywood”, na qual Trump, em conversa com um repórter, diz que pode fazer o que quiser com as mulheres: “Quando se é uma estrela, elas deixam fazer tudo. Até agarrá-las pela rata.” Meia hora depois o Wikileaks publicou milhares de emails do director da campanha de Hillary, John Podesta, com informações que, não mostrando ilegalidades, eram contudo comprometedoras para a imagem da candidata.

A gravação “Access Hollywod” captou toda a atenção da comunicação social e do público, obscurecendo totalmente o comunicado sobre a interferência russa. Trump desculpou-se publicamente, à maneira dele: a conversa era antiga e tinha ouvido comentários muito piores de Bill Clinton, além de que Hillary tinha “agredido, atacado e achincalhado as suas vítimas”, sem especificar quais os actos e as vítimas.

No dia seguinte, Priebus disse a Bannon que a campanha estava acabada; os doadores tinham parado de doar e políticos como Paul Ryan iam abandoná-lo.

Na reunião que se seguiu com o candidato, apresentou-lhe duas opções: ou desistia imediatamente ou ia perder a eleição por uma margem tão grande que seria uma humilhação para o resto da vida. Todos os presentes tinham a mesma opinião, excepto Bannon e Trump, que achavam que deviam passar ao ataque.

créditos: AFP

O relato de Woodward, que inclui pormenores da conversa, mostra bem que nesta altura dos acontecimentos o único que tinha percebido a situação política estratégica actual era Bannon. Todos os outros ainda pensavam em termos tradicionais, sem levar em consideração a opinião do eleitorado, que queria mudar o sistema, não a hipocrisia tradicional. E Trump, evidentemente, embora não percebendo que houvera uma mudança, estava disposto a ser como era, sem remorsos. Ao princípio da tarde publicou o seguinte tweet para o mundo: “A media e o establishment querem tanto que eu saia da contenda – EU NUNCA DESISTIREI DA CAMPANHA E NUNCA DEIXAREI CAIR OS MEUS APOIANTES! #MAGA” (Make America Great Again, o seu mote.)

“Você é um fraco. Um bebé. Quando é que se vai tornar um homem?”

O único dos próximos de Trump que aceitou aparecer na TV, em cinco programas, foi Giuliani. A sua defesa basicamente era que as pessoas mudam e o Trump da gravação, feita em 2005, não era o Trump candidato em 2016.

Trump detestou a abordagem de Giuliani e insultou-o: “Você é um fraco. Um bebé. Quando é que se vai tornar um homem?”

A partir deste episódio, é Bannon que passa a dirigir de facto as operações, em consonância com a atitude natural de Trump: não há que pedir desculpas, a melhor defesa é o ataque. E assim Bannon convocou as quatro mulheres que tinham acusado Bill Clinton de as importunar sexualmente para uma conferência de imprensa. Uma delas, Juanita Broaddrick, disse: “O Sr. Trump pode ter dito algumas coisas feias, mas Bill Clinton violou-me e Hillary Clinton ameaçou-me!”.

Em seguida, no debate com Hillary, Anderson Cooper, o moderador, jornalista da CNN, perguntou a Trump se sabia que se tinha vangloriado de assaltar as mulheres sexualmente. O candidato retorquiu: “Quando vivemos num mundo em que o ISIS anda a decapitar pessoas... quando temos guerras e coisas horríveis a acontecer em toda a parte... sim, estou muito envergonhado e detesto tê-lo dito, mas foi conversa de balneário, nada de importante. Vou é acabar com o ISIS.”

Um episódio significativo refere-se à necessidade de dinheiro da campanha. Percebe-se que foi contado a Woodward por David Bossie, director adjunto de Bannon. Eles os dois, Kellyane Conway, Steven Munchin e Jared Kushner, que estava a tomar conta dos aspectos financeiros da operação e sabia que o candidato considerava todos os donativos como se fossem dele. O problema era que os doadores tinham diminuído muito, a campanha precisava de 50 milhões de dólares e Bossie sugeriu que Trump emprestasse o dinheiro. Kushner disse logo que o sogro nunca meteria o seu dinheiro. Depois de todos insistirem, Trump finalmente concordou em emprestar 10 milhões, a serem devolvidos assim que as finanças da campanha permitissem. Mas chamou Chris Christie, que liderava a equipa de transição de mandatos na Casa Branca, e acusou-o de estar a roubar a quantia necessária em benefício dessa equipa de transição. Depois de muitas discussões concordou que Christie tratasse da equipa, mas afirmou que não queria saber do assunto.

“Não fazia ideia que fosse ganhar. Não se tinha preparado"

Quando foi declarada a vitória de Trump pela agência Associated Press, o novo presidente falou aos seus adeptos no New York Hilton. O discurso parecia o mais tradicional dentro do estilo: “Prometo a cada cidadão da nossa terra que serei um Presidente de todos os americanos. Não tivemos uma campanha, mas antes um movimento enorme e incrível que incluiu americanos de todas as raças, religiões, origens e crenças. (...) Procuraremos o terreno comum, não a hostilidade; colaboração e não conflito.”

Mais tarde Bannon diria a Woodward que Trump estava surpreendido: “Não fazia ideia que fosse ganhar. Não se tinha preparado. Nunca pensou que perderia, mas também não achava que ganhasse. Clinton passou a vida toda a preparar-se para uma vitória; Trump não gastou um segundo.” O director da equipa de transição, que já não era Christie, estava de férias nas Bahamas. Priebus e Bannon, ao dividirem os cargos que por aí vinham, inventaram um novo para Bannon, “Director de Estratégia” – uma ideia de Priebus para que ele não fosse “Director do Pessoal”.

Para Secretario da Defesa, Trump convidou um general conservador que tinha sido assessor de Dick Cheney, Jack Keane. Keane não aceitou o lugar por razões pessoais, mas recomendou vivamente outro general, Jim Mattis, que dirigira as forças americanas no Médio Oriente e fora despedido por Obama por ser a favor de um ataque frontal ao Irão. Mattis, solteiro, muito culto e inteiramente dedicado à Marinha, era conhecido como o “Monge Guerreiro”. Uma das fixações de Trump era acabar com o Califado Islâmico (ISIS) e Mattis disse-lhe o que ele queria ouvir: “Não podemos continuar a fazer-lhes uma guerra de desgaste. Tem de ser uma guerra de aniquilação”. Trump “adorou” o conceito.

Para Bannon, Mattis tinha defeitos; era demasiado liberal nas políticas sociais e um globalista. Mas percebeu que era tanto guerreiro como consolador; passou a chamá-lo de “Secretario das Garantias”(“Assurance”).

Woodward descreve, com bastantes pormenores, como Trump, que não tinha uma equipa, nem experiência política ou administrativa, escolheu os seus secretários. Em geral, contra todas as expectativas do “establishment” de Wahshington, que aliás tinha prometido “limpar”, e sob uma visão mais empresarial do que estratégica. Foram os casos de Rex Tillerson, administrador da Exxon Mobil, para Secretário de Estado (o equivalente a Ministro dos Negócios Estrangeiros no nosso sistema) e Gary Cohn, presidente da Goldman Sachs, para Director do Conselho Nacional de Economia. Cohn é que sugeriu o posto, depois de ter recusado vários que Trump lhe ofereceu. E percebeu logo que o Presidente não percebia nada de finanças públicas. Woodward conta que durante uma reunião com Cohn em que estavam presentes vários próximos, Trump humilhou o seu novo Secretário do Tesouro, Steve Mnunchin. Em todo o livro é constante a atitude de Trump insultar e humilhar os seus secretários à frente de toda a gente.

O general Michael Flynn, uma figura controversa que fora despedido da Agencia de Defesa de Segurança por Obama, e que tinha feito campanha por Trump gritando “Prendam a Hillary” nos comícios, foi nomeado Conselheiro de Segurança Nacional.

"Uma das mais importantes, bem documentadas e convincentes avaliações das agências de informação dos últimos tempos”

Obama deu ordens aos seus directores de Segurança que produzissem um relatório pormenorizado sobre a interferência russa nas eleições e o entregassem ao “Gang dos Oito” e a Trump recém eleito. James Clapper, Director de Segurança Nacional, John Brennan, Director da CIA, James Comey, Director do FBI e Mike Rogers, Director da Agencia de Defesa de Segurança, reuniram-se com o Presidente Eleito para lhe apresentar o relatório. O original, que incluía a famosa história de que os russos teriam um vídeo comprometedor para Trump, descoberto pelo agente britânico Christopher Steele, tinha 35 páginas. Para a apresentação a Trump foi reduzido a quase quatro páginas e o episódio do vídeo omitido. Mas o original já tinha sido vazado para a comunicação social.

Trump começou logo no dia 9 de Dezembro a mostrar publicamente o seu desprezo pelas agências de segurança, “os mesmos que disseram que Saddam Hussein tinha armas de destruição maciça.”

Finalmente os directores de segurança reuniram-se com Trump, Clapper falando por todos. Teve o cuidado de moderar a linguagem e não fez nenhuma menção à suspeita de que o Presidente ou os seus próximos tivessem “conspirado” ou coordenado esforços com os russos. Depois Comey contou a história de que os russos teriam a tal gravação de 2013 com Trump e prostitutas no quarto de hotel de Moscovo onde anteriormente dormiram Obama e a mulher. E deixou claro que o FBI não estava a investigar Trump.

Woodward acha que, sendo o relatório geral uma obra magna, “uma das mais importantes, bem documentadas e convincentes avaliações das agências de informação dos últimos tempos”, não seria conveniente Comey acrescentar, como uma nota de rodapé, uma informação que não podia ser verificada e que, obviamente, iria irritar Trump e levá-lo a menorizar todo o relatório. Essa é a opinião de Woodward; já Comey, no livro que escreveu um ano depois, “Uma lealdade mais alta”, justifica-se dizendo que tinha de contar ao Presidente que essa informação existia, mesmo sabendo que Trump poderia assumir que ele estava simplesmente a fazê-lo refém dum segredo, no estilo do falecido Edgar J. Hoover, o director do FBI que tinha informações comprometedoras sobre toda a gente.

Quatro dias depois, a agência digital Buzzfeed publicou o relatório de 35 páginas. Todas as certezas sobre a interferência russa eram agora públicas – e também a suspeita da história no hotel de Moscovo.

Numa entrevista à Fox News, Woodward defendeu que a parte do hotel, não confirmada, nunca deveria ter aparecido num relatório de factos confirmados. Trump agradeceu-lhe num tweet, o que o deixou desconfortável; não queria parecer que tinha escolhido um lado da contenda. Evidentemente que tudo aquilo teve um papel fundamental na guerra entre Trump e a “comunidade de informação”, especialmente o FBI e Comey.

Depois de relatar um encontro das mais altas autoridades militares com Trump sobre a NATO, Woodward dedica-se ao caso do General Michael Flynn. O assessor de Segurança Nacional foi exposto pelo “The Washington Post” como tendo tido contactos inapropriados como o embaixador russo, Sergey Kislyak antes de Trump tomar posse. A sub-Secretária da Justiça Sally Yates, que vinha do tempo de Obama, contou ao advogado da Casa Branca, Donald McGahn, que havia informações de que Flynn tinha mentido sobre os seus contactos com os russos e podia ser alvo de chantagem. Priebus, McGahn e o vice-presidente Mike Pence leram o relatório de Yates e chegaram à conclusão que Flynn não podia continuar no cargo. A sua renúncia foi anunciada a 13 de Fevereiro, com a justificação de que ele tinha mentido a Pence sobre os contactos com o embaixador. Nove meses depois Flynn considerou-se culpado de ter mentido ao FBI.

À medida que o tempo vai passando e os colaboradores de Trump vão sendo admitidos e demitidos – mais do que em qualquer outra Administração – surgem também desabafos de alguns deles. Por exemplo, a certa altura Woodward conta que o general Kelly considera o seu papel de Chefe de Gabinete como “o pior trabalho da minha vida” e diz que a Casa Branca é um “asilo de doidos”. Woodward acrescenta, num dos raros momentos em que dá a sua opinião: “Asilo de doidos seria um título perfeito para este livro, pois suspeito que a inesquecível descrição de Kelly terá uma importância histórica maior do que o seu trabalho.”

O relato do livro termina quando o advogado de Trump, John Dowd, abandona a equipa legal, concluindo que não podia continuar a representar uma pessoa que é um “mentiroso de merda.”

Por mais agitação que o livro provoque – no primeiro dia de publicação já tinha garantido vendas de um milhão de exemplares – e por mais que Trump e os retratados neguem publicamente terem dito o que disseram, “Fear” ficará certamente como o relato mais fidedigno deste Governo.

Por outro lado, não é provável que mude nada. Os desafectos de Trump vêem confirmadas as suas perspectivas, e os seus defensores continuam a achar que é mais um ataque dos “inimigos do povo”.

Mas é uma saborosa narrativa dos meandros do poder. Pode até ser lido como um romance, como uma peça de Shakespeare sem o talento literário do poeta inglês. Já Agora, toda a gente considera que Shakespeare se baseou em factos reais...