Antes de mais, e para acabar com as habituais confusões: o país chama-se “Reino Unido da Grã Bretanha” e é constituído por quatro nações: Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte. Dizer “Reino Unido”, uma realidade política, não será o mesmo que dizer Grã Bretanha, visto que esta é a ilha geográfica e não inclui a Irlanda (apenas a do Norte, desde 1922, data em que a Irlanda do Sul se tornou independente). Para simplificar, usa-se comumente Reino Unido e Grã Bretanha como se fosse a mesma coisa. Os ingleses empregam coloquialmente “Britain” para se referir à realidade política, daí que o governo seja Governo Britânico. Adiante.
No referendo de 23 de junho de 2016, uma maioria de cidadãos britânicos votou a favor da separação do país da União Europeia, para onde entrara em 1973 (na época, ainda CEE). Como foi amplamente noticiado na altura, a decisão não foi consensual entre os votantes, com opiniões opostas segundo linhas geracionais (os mais velhos a favor, os mais novos contra), regionais (os galeses a favor, os escoceses contra) e sociais (os mais pobres a favor, os mais ricos contra).
O referendo fora convocado pelo Governo Conservador de David Cameron, ele próprio a favor da permanência do país na UE (um remainer, como eles dizem). Uma parte do Partido estava com Cameron e outra parte favorecia a saída (os leavers ou brexiteers).
A campanha foi um desastre e um mau exemplo de democracia, situação estranha para um país que não só é a mais velha democracia parlamentar em existência, como se orgulha dos seus governos, ao longo da História pragmáticos e sempre unidos em torno do interesse nacional. Se dissensões terá havido nos ministérios em muitos períodos difíceis, ficaram sempre dentro dos gabinetes. Mas desta vez o Governo Conservador, no poder, estava publicamente dividido quanto ao assunto; os Trabalhistas, na oposição, pareciam não se interessar muito pela questão e praticamente não fizeram campanha; e um partido mínimo da direita radical, o UKIP, fez a festa praticamente sozinho, inundando o país com slogans falsos e promessas vazias. (Por exemplo: “vamos deixar de dar dinheiro à Europa e gastá-lo no Serviço Nacional de Saúde”.)
O maior problema é que ninguém fez contas, nem os grandes partidos, que tinham os dados e os meios para as fazer, nem os pequenos, que só afirmavam que a Grã Bretanha voltaria a ser “independente das decisões de Bruxelas” e que “os imigrantes que nos tiram postos de trabalho vão-se embora”. Ninguém pensou, por exemplo, que as decisões de Bruxelas eram tomadas por um consenso em que o Reino Unido também participava; ou que os postos de trabalho eram ocupados por imigrantes porque os nativos não os queriam. O que parece, agora, dois anos depois, é que ninguém pensou muito no assunto e venceu aquele orgulho insular do “em nós ninguém manda, somos senhores do nosso destino”.
Também ninguém pensou muito nas questões práticas implícitas na separação da Grã Bretanha da União Europeia e que constituem uma lista interminável: como reverter a legislação europeia para uma legislação nacional? Como taxar a circulação enorme de bens que circulam entre as ilhas e o continente? Como separar os mercados de investimentos e capitais? O que fazer com as empresas britânicas que pertencem a empresas continentais e vice-versa? Como regularizar a situação dos britânicos que vivem na Europa e dos europeus que trabalham no Reino Unido? Como resolver o problema da fronteira terrestre entre a Irlanda do Sul, que permanece na UE, e a Irlanda do Norte, que sai?
Estas e muitas outras incógnitas, grandes e pequenas, teriam de ser resolvidas em duas etapas; primeiro, os britânicos decidirem o que querem; segundo, os europeus concordarem com essas decisões. Ora, dois anos depois do Brexit e a um ano do divórcio formal, o problema ainda está na primeira etapa: o Governo de Sua Majestade não consegue dizer o que quer, quanto mais propor algo exequível aos europeus – europeus esses que, como muito má vontade em relação ao processo, não estão dispostos a aceitar soluções vagas ou atabalhoadas. O Brexit pressupõe, por exemplo, que os cidadãos europeus não possam circular livremente na Grã Bretanha, mas que os britânicos circulem à vontade na Europa.
Entretanto as grandes empresas britânicas, impacientes com a indefinição da situação – em negócios é necessário ter um horizonte seguro, para planear os investimentos – começam a queixar-se abertamente, o que deixa Governo e cidadãos com os nervos em franja. É o caso da Airbus, uma empresa tipicamente europeia, que está registada na Holanda e é negociada nas bolsas de Paris, Frankfurt e Madrid: os componentes dos aviões são fabricados por toda a Europa e montados em Toulouse. As asas, centenas delas, são fabricadas por 13 mil trabalhadores em Filton e Broughton. Se tiverem de pagar taxas de importação, ou mesmo apenas que passar por trâmites alfandegários, já não é interessante para a Airbus fazê-las na Grã Bretanha. Na dúvida, a Airbus já suspendeu novos investimentos nas ilhas. E 13 mil postos de trabalho directos significam mais de cem mil indiretos...
A Rover/Rolls Royce também já veio a público perguntar o que pode esperar do futuro. A empresa, símbolo do engenho mecânico e luxo britânicos, pertence em partes iguais à alemã BMW, à inglesa Leyland, à americana Ford e à indiana Tata – e todos os seus donos produzem nos respetivos países peças para os carros ingleses, enquanto os britânicos produzem peças para os BMWs, Fords e Tatas. O inglesíssimo Jaguar também pertence à Tata... O facto é que as grandes empresas se tornaram multinacionais, o que implica uma troca de componentes e circulação de técnicos. Quantos alemães trabalharão em Cowley, onde são feitos alguns Mini? Quantos ingleses trabalham em Born, na Holanda, onde são feitos outros Mini? E quanto beneficia com isso a BMW, dona da marca?
Para todas estas questões e muitas outras, o Governo de Theresa May ainda não encontrou uma resposta. Mas, à medida que a data fatídica de 29 de março de 2019 se aproxima, dentro do Gabinete da periclitante senhora avolumam-se as propostas, divididas entre os ministros a favor dum hard Brexit (“saímos e depois negociamos caso a caso”) ou dum soft Brexit (“negociamos para sair em beleza, mantendo as regalias que temos agora”.) Isto, é bom salientar, à vista de toda a gente – inclusive dos negociadores europeus, que já olham para os ingleses com um misto de desdém e dó.
Encostada à parede, Mrs. May resolveu armar-se em dura. Na sexta-feira passada reuniu o Gabinete na sua casa de campo, em Chequers, a 60 quilómetros de Londres, e apresentou o seu programa como um ultimato. Segundo relatos fidedignos, terá dito que para os ministros que não concordassem, tinha um número de táxi disponível – ou seja, estavam demitidos imediatamente e nem teriam carro oficial para voltar para casa.
Se foi isto que se passou em Chequers, ninguém confirma; mas o facto é que todos os ministros, talvez sem trocos para o táxi, disseram que sim. Só que, chegados a Londres e ao recato dos seus gabinetes, mudaram de ideias.
No dia seguinte, David Davis, que por acaso era o ministro encarregado do Brexit, demitiu-se. E logo a seguir Boris Johnson, o mais destacado brexiteer, seguiu-lhe o exemplo. Davis, um defensor do hard Brexit declarou que não conseguiria viver com as propostas de May. Johnson, sempre eloquente, afirmou que as ditas propostas eram o mesmo que “puxar o brilho a um cagalhão”. Isso mesmo, polishing a turd. Estamos neste nível, no Governo de Sua Majestade.
Enquanto isto os Trabalhistas, que parecem viver numa realidade paralela, criticam a indecisão de May mas não apresentam alternativas, viáveis ou inviáveis. Jeremy Corbin limita-se a falar no desprezo dos conservadores pelos direitos dos trabalhadores, como se a questão se resumisse a direitos e a trabalhadores.
O negociador-chefe europeu, Michel Barnier, veio alertar mais uma vez, com enfado na voz, que a UE não permitirá que a Grã Bretanha escolha a dedo os benefícios que pretende – nada de taxas aduaneiras – sem pagar a respetiva contrapartida – circulação livre de pessoas e bens. Só aceitará propostas que sejam “negociáveis e realistas”, o que quer dizer que considera que as propostas britânicas não são nem uma coisa nem outra.
O que os ingleses estão a ver é um cenário em que terão de acatar as decisões de Bruxelas, sem ter assento em Bruxelas para as discutir. Se não conseguirem as tais propostas realistas, é o que lhes vai acontecer ao sair da UE sem acordo.
Já se fala que Johnson se demitiu para concorrer ao cargo de May. É uma hipótese. Porque este psicodrama ainda está longe do fim. Esta semana entra um artista convidado que também tem opiniões definidas sobre o que lhe diz e não diz respeito: Donald Trump. Visitará a Grã Bretanha – sabendo-se que é a favor dum hard Brexit – e irá à cimeira da NATO, em Helsínquia – sabendo-se que é contra a Europa em geral e a NATO em particular. Depois, terá um tête-a-tête com o seu amigo Putin. Ah, mas isto já são os próximos capítulos... Até lá “apertem os cintos porque vai ser uma viagem sacudida”, como dizia a saudosa Bette Davis.
(Artigo corrigido pelas 16h18: Trata-se de David Cameron e não James Cameron)
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