O anúncio, há dez anos, em 5 de outubro de 2010, da descoberta ao longo da costa região de gigantescas reservas de gás, logo estimadas como das 10 maiores no mundo, prometeu milhares de milhões de dólares e foi celebrado como catapulta para o desenvolvimento de Moçambique. O Banco Mundial antecipou que Moçambique subiria ao escalão de países emergentes e que até 2025 o país poderia dobrar o PIB. Falou-se de “possibilidades infinitas” na zona que é a mais dramaticamente pobre e com mais desemprego. Mas também foi reconhecido que esta exploração requer técnicos qualificados. É por isso o novo gigante industrial gera escasso emprego para a população local com desgraçados níveis de educação.
Os estrangeiros começaram a chegar a Cabo Delgado, mas já não era para turismo. As multinacionais Total, ExxonMobil e ENI de imediato tomaram a dianteira na negociação da concessão e, logo a seguir, a construção das infraestruturas para a exploração offshore. Falou-se na ambição de maior projeto industrial no continente africano.
Surgiu o alerta para bomba ambiental. A ONG ambientalista Friends of the Earth avisou que a exploração que estava a ser organizada em Cabo Delgado tinha potencial para lançar na atmosfera uma quantidade anual de gás causador de efeito de estufa equivalente a sete vezes o que é lançado em cada ano pela França.
Mas a bomba climática não foi a primeira a deflagrar. Cabo Delgado, região com paupérrima presença do Estado moçambicano tornou-se progressivamente lugar de medo e terror.
Surgiram primeiros ataques brutais, com a terrível violência a passar por decapitações com catanas a par do mais recente recurso a armas automáticas. Quem são esses bandidos? Há quem veja neles réplicas dos bandoleiros que na viragem para este século puseram a pirataria a dominar a costa da Somália, então país sem Estado. Tem-se como certo que as motivações destas criaturas que aterrorizam Cabo Delgado são variadas, passam pelo tráfico de heroína e marfim, o garimpo de rubis da fértil mina de Montepuez e culminam na escalada jihadista.
O veneno das expectativas sempre frustradas e das ásperas rivalidades étnicas locais numa região que já tinha maioria islâmica propiciou terreno fértil para a disseminação de influências externas, designadamente as que invocam uma identidade islâmica. É o caso de bandos armados inspirados no Daesh/”estado islâmico” e na experiência destes movimentos terroristas a cativar jovens revoltados em populações que se consideram desprezadas pelos poderes oficiais.
Em Cabo Delgado, o avanço das instalações ligadas à exploração do gás fez disparar revolta entre os locais, que se sentem espoliados, com perda de terras, de acessos ao mar e, consequentemente, de alguns dos escassos meios de subsistência. Zonas essenciais da terra deles estão a ser progressivamente ocupadas pela gente das multinacionais, sempre protegida e escoltada por operacionais estrangeiros de empresas privadas de segurança.
Entre estes seguranças há veteranos de guerras e guerrilhas, do Cáucaso, do Médio Oriente e da África Central e Oriental.
Estão assim formados dois mundos: o dos locais e o daqueles que muitos locais chamam de mercenários.
Há uma terceira parte: a insurgência jihadista. Cabo Delgado é a única província moçambicana com clara maioria islâmica. Nos últimos 30 anos cresceu no Conselho Islâmico de Moçambique um facção muito ligada a Cabo Delgado que preconiza a leitura mais fundamentalista do Corão. Essa facção tomou, em 1998, a forma de movimento organizado, com o nome de Ansar al-Sunna e passou a controlar as mesquitas do nordeste moçambicano e a impor o culto radical, também fomentado nas “madrasas” (escolas corânicas). Ficou assim criado terreno propício para a progressão dos al chabab (chabab traduz-se por jovem), com jihadistas que desceram pela costa oriental de África, alguns a partir da Somália e que nesta última década se posicionaram numa zona da Tanzânia junto à fonteira com Moçambique. Transitaram nos últimos anos para a província de Cabo Delgado e passaram ao ataque.
Esta violência jihadista em Cabo Delgado disparou há dois anos. As primeiras vítimas foram representantes do Estado moçambicano. Nestes últimos dois anos, os ataques generalizaram-se, cada vez mais frequentes e sempre brutais. Nem toda a violência será jihadista. Sabe-se que alguns tiroteios envolvem grupos rivais de pescadores metidos no tráfico da heroína exportada do Afeganistão e de portos do Paquistão e que a partir da costa de Cabo Delgado é distribuída por diferentes destinos, com a África do Sul como placa giratória. Conta-se que o contrabando de rubis de Montepuez e de marfim também faz correr muito sangue.
Para o Estado moçambicano, a grande questão é o jihadismo que cresce e que ganha adeptos entre jovens sem esperança na organização do estado moçambicano.
O exército foi ativado mas, apesar da experiência de combate da Frelimo, quer na guerra colonial, quer na guerra civil, as forças do Estado não conseguem controlar o que se passa em Cabo Delgado, fora das áreas supervigiadas pelas forças de segurança das multinacionais.
A cidade portuária de Macímboa da Praia está, confirmam fontes da igreja católica, tomada por jihadistas,
Os guerreiros que usam o modus operandi do autodenominado “Estado Islâmico”(EI) passaram das catanas para as armas automáticas, controlam estradas, assaltam e ocupam edifícios governamentais e religiosos, e içam bandeiras negras nos lugares conquistados.
Também controlam parte das rotas dos tráficos em Cabo Delgado.
O sistema do EI assume que os guerreiros ao ataque em Cabo Delgado fazem parte da sua órbita e reivindica algumas das operações. Num comunicado de 4 de junho de 2019 o EI proclamou que “os soldados do “califado” repeliram em Metubi um ataque do exército de cruzados moçambicanos”, acrescenta que foram mortos vários militares moçambicanos e “apreendidas várias armas e munições”.
A ONU estima que este terror jihadista já causou mais de 1000 mortos e fez deslocar mais de 200 mil pessoas num êxodo que continua.
Um problema suplementar: a vaga terrorista levou as ONG que estavam presentes na região, como a Médicos Sem Fronteiras, a decidirem a retirada. Falha assim muito apoio em saúde e alimentos.
Esta tragédia em curso em Cabo Delgado aparece pouco nas notícias. Faltam repórteres no terreno.
O Papa tem sido uma voz de alerta para o que está a acontecer em Cabo Delgado. Fez uma chamada de atenção na bênção Urbi et Orbi da Páscoa deste ano, no pico da pandemia. Agora, na última quarta-feira, o Papa Francisco telefonou para Cabo Delgado. Quis falar com Dom Luís Fernando Lisboa. Ele é o brasileiro que exerce corajosamente como bispo de Pemba, cidade capital de Cabo Delgado. O Papa quis manifestar-lhe todo o apoio possível e gratidão pelo modo como está a conduzir a ajuda às populações e pela determinação na denúncia desta tragédia.
Moçambique conseguiu desfazer o essencial dos confrontos armados de 15 anos de guerra civil (1977-92) e as bases para entendimento entre as partes rivais, Frelimo (sempre no poder) e a Renamo ficaram seladas no acordo de paz de 1994 negociado com sabedoria pela Comunidade de Santo Egídio. A Renamo, porém, nunca deixou de recolocar atritos e de reivindicar a autonomia das províncias do norte onde tina implantação. São regiões que ficaram sempre mais abandonadas pelas obrigações do Estado, que negligenciou estruturas de saúde, de educação e de segurança. Abandonou as pessoas, deixou que as florestas fossem destruídas e tem sido impotente para travar o massacre de elefantes pelo tráfico de marfim. O turismo era uma esperança nos paraísos naturais do norte. Surgiu a euforia com a exploração de hidrocarbonetos. Desgraçadamente, avançou o terrorismo.
É deplorável que seja tão residual a atenção portuguesa ao que se passa numa terra à qual estamos ligados por tão antigos laços culturais.
FONTES PRINCIPAIS:
- Bispo D. Luíz Fernando Lisboa
- ACLED
- Comunidade de Sant'Egidio
- Fundação Ajuda à Igreja que Sofre
- O País
- Ponto SJ
- Stratford
- UNODC
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