As folhas brancas nas mãos dos manifestantes são o símbolo do protesto contra o país fechado à chave por causa da Covid, que nestes últimos dias irrompeu por cidades da China, com as imensas Xangai e Pequim à cabeça. Xi Jinping, apenas um mês depois de se fazer aclamar em triunfo como líder (até parece que pretende ser vitalício) no XX congresso do partido único, o Partido Comunista Chinês (PCC), está confrontado com um inesperado desafio à autoridade do chefe.
A morte de 10 pessoas num incêndio num prédio de apartamentos em Urumqui, região com 25 milhões de pessoas (muitas de minoria muçulmana) com três meses de confinamento pela pandemia, é o detonador do protesto que se propaga pelo país com 1,4 mil milhões de pessoas. Há alegações de que as restrições, que incluem barricadas, ao movimento de pessoas contribuíram para, por um lado, dificultar que as pessoas escapassem às chamas, por outro, demoraram a chegada de socorros.
As imagens do desespero em Urumqui circularam antes de ser imposta a censura. Ainda correram pelos ecrãs dos telemóveis as imagens de manifestantes na região que logo na quinta-feira desafiaram as proibições e marcharam a gritar “fim ao confinamento”.
A dada altura do desfile principal em Urumqui, as pessoas começaram a entoar a Marcha dos Voluntários, hino nacional chinês, com versos que começam com o incitamento “Levantai-vos, vós que recusais a escravatura!”. O significado do hino, que todos conhecem, é poderoso. Às vezes as palavras são ainda mais fortes que as ações. Neste caso, tudo estava a ser transmitido em direto por redes sociais. A gravação deste desfile foi replicada por milhões de pessoas.
O hino nacional chinês passou a funcionar como voz do protesto em que os manifestantes erguem folhas brancas. Uma das maiores concentrações partiu, na sexta-feira, em desfile da prestigiada universidade de Tsinghua, em Pequim, aquela onde Xi Jinping se licenciou. Alguns estudantes mais ousados gritaram “demissão de Xi Jinping, demissão dos ditadores”.
Há relatos de que estas cenas se repetiram em pelo menos mais umas 50 universidades.
A audácia dos estudantes que passaram a encabeçar o protesto mistura a reivindicação de fim das restrições pela pandemia com a aspiração de liberdade.
É algo de nunca visto desde as manifestações da Primavera democrática de 1989, esmagadas no banho de sangue na Praça Tiananmem no 4 de junho de desgraçada memória.
Nesse tempo, há 33 anos, houve uma imagem que deu a volta ao mundo: no meio da repressão, um homem com camisa branca, sozinho, colocou-se à frente de uma coluna de tanques e obrigou o blindado à cabeça da coluna a guinar para a direita, antes de parar. Aquele homem desconhecido e aquela imagem tornou-se, no mundo democrático, símbolo da resistência. Mas o regime chinês que sufocou e esmagou a rebelião, proibiu aquela fotografia. Nenhum jornal, nenhuma televisão a mostrou.
Agora, a censura chinesa voltou a entrar em ação. Quem procura nas redes na China imagens dos protestos encontra os posts preenchidos com o mesmo vídeo intrusivo ou até conteúdos pornográficos.
Nas televisões, um dos destaques era o Mundial de futebol. Mas também já está a gerar problema porque as imagens mostram os adeptos divertidos nas bancadas e sem vestígios de máscaras. Os chineses perguntam-se se estarão a viver num outro planeta.
Nas rádios da China também há silêncio total sobre os protestos. A atenção está atraída para “especiais” sobre a missão espacial Shenzhou-15 que deve transportar três “taikonautas” para a estação espacial.
O poder político chinês, encabeçado por Xi Jinping, está confrontado com um dilema: não quer renunciar à política “zero covid”, mas percebe que é insustentável manter em confinamento centenas de milhões de pessoas que estão furiosas.
O regime vai obviamente evitar um bis de Tiananmen 33 anos depois — o que, aliás, isolaria a China e assim agravaria a alta tensão e crise internacional. Mas num país onde nenhuma oposição é tolerada, o contágio do protesto popular democrático e organizado está obviamente a sobressaltar a liderança que se sentia triunfante.
A covid, depois de ter sido um grave problema económico para a China, com a produção a cair a pique, é agora um sério problema político.
A chispa que deflagrou em Urumqui e que rapidamente se propagou pode provocar um incêndio social e político muito difícil de controlar.
O regime chinês já está a denunciar ingerências estrangeiras para fomentar os protestos — costuma ser assim a acusação nos regimes fechados, veja-se como os aiatolas do Irão se atiram a denunciar os satãs ocidentais.
Um dos problemas é o de a procura de estabilidade global precisar da China. O crescimento do consumo chinês ajudou a aliviar a crise financeira internacional de 2008. Agora, quando está a instalar-se a recessão generalizada, seria bom que a China pudesse funcionar como contrapeso e não estivesse fechada e deprimida.
A China enfiou-se numa imensa gaiola para se proteger da pandemia mas a liderança política está agora a perceber que também se meteu numa armadilha, que tem em fundo a essencial questão de sempre: a da falta da liberdade da democracia. A população chinesa já toda está consciente de que, apesar da continuação dos contágios, os outros países optaram por aceitar conviver com o vírus e as coisas vão funcionando. Eles, estão fechados.
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