Por isso, quando a pandemia começou, sofri com a distância e com o facto de não estarmos juntos. O sofrimento continua, já se sabe, mas as amizades, as verdadeiras, ajustaram-se a estes tempos. Falamos de viva-voz, por escrito, não deixamos esmorecer o contacto. Às vezes, depois de um passeio higiénico, fico a ver a minha madrinha de casamento à varanda do seu prédio. É bom termos madrinhas.

Na semana passada, morreu a minha madrinha de baptismo. Foi um baptismo tardio e muito vivido na companhia deste ser humano maravilhoso que foi a Xexão (Maria da Conceição Moita). Durante um ano conversámos. Não eram aulas de catequese, eu era já muito crescida para isso, já tinha dois filhos. A minha opção estava pejada de dúvidas, é certo, mas da parte da Xexão nunca senti que fosse possível julgar-me. Dava a sua opinião, a sua perspectiva. Sempre me disse que não temia a morte porque “ia ver a Deus”. A sua fé era uma lição para muitos.

Era católica progressista, anti-fascista. O 25 de Abril de 1974 apanhou-a na prisão de Caxias. No dia seguinte, já de noite, viu-se em liberdade, pronta para a democracia. Quando falava desses dias não assumia qualquer dimensão heróica: lutar contra o fascismo era a única opção. Esta mulher de Abril tocou muita gente, escutava muita gente. A sua maior qualidade não tenho como dizer qual seria, quem sou eu?, mas a sua capacidade para ouvir o Outro era coisa rara, já de outros tempos. Ouvir e não julgar é o maior dos tesouros. O encontro com uma pessoa assim muda-nos para sempre.

Em tempos e dias virulentos, penso como estamos a perder a ligação com algumas pessoas que amamos. Culpava, antes de 2020, a velocidade, a vertigem em que vivemos, pendurados em horários e obrigações, sempre ligados, sempre prontos para comunicar, mas comunicando pouco. Com a pandemia, posso culpar o vírus, é mais fácil. O alinhamento dos astros. A verdade é outra, não nos esforçamos, não atribuímos prioridade ao que é realmente prioritário: o amor de alguém. A amizade é a melhor forma de amor e sei que a Xexão era minha amiga. Eu era sua amiga, sua afilhada. Não poupei em imbecilidades para estar com ela o tempo que deveria. Fui burra. Não há outra forma de o dizer. Sei que pode ser considerado lamechas, esta coisa de confessar o meu remorso, ou a minha pouca disponibilidade para pessoas que amo e que não fazem parte da minha vida diariamente. Tenho-as como certas? Porventura sim. É um erro. A minha madrinha era uma mulher incapaz de cobrar o que fosse, bem sei. Sofria da mesma teimosia de que sofro, essa crença nas pessoas. Praticava a proximidade melhor do que eu. É um caminho, diria, que se faz caminhando, porque tudo na vida o é. Obrigada, Xexão.