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Há muitos anos, quando ainda era um adolescente, fui a Andorra de carro com a minha família. Era Agosto, neve não havia.
Não me lembro de muito. Lembro-me da fronteira entre Espanha e Andorra. Lembro-me de olhar para o céu (ainda em Espanha) e encontrar muito mais estrelas do que em Portugal. Lembro-me de subir montanhas e montanhas e entrar pela primeira vez na França, onde vi um castelo com a tricolor a ondear.
E lembro-me de ter ouvido algo num quarto de hotel que me mudou a vida.
Já conto.
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Pois, este ano, depois de um fim-de-semana na Serra da Estrela, ali em meados de Janeiro, em que encontrámos um triste pedaço de neve perdido ao pé da estrada, depois dum Inverno para esquecer, prometi aos meus filhos: nas férias da Páscoa, vamos ver neve a sério.
Na verdade, não seria só para ver neve, até porque não somos grandes esquiadores. Queria — como acontece sempre aos pais — repetir com os filhos as felicidades da infância. Uma viagem a Andorra era uma maneira de recuperar essa velha viagem que fiz no século passado.
Fomos de carro pela Península fora, a ver quilómetros, as placas e as terras a passar. Ficámos em Madrid uma noite, num hotel onde encontrei o peculiar madrileno que aprendera português para poder falar com os turistas. Eu a tentar treinar o meu castelhano e o homem a falar-me em galego (sim, um madrileno a falar português está a falar mais galego que português, sem saber).
Na manhã seguinte, seguimos pela estrada fora, entrámos na dolça Catalunha, com as placas já em catalão, virámos à esquerda e, uns campos e túneis depois, lá estava eu de novo na mesma fronteira de há muitos anos. Do lado de lá, havia um pequeno país escondido no meio das montanhas.
Não me parece que alguém queira aqui um relato das férias, que para isso já bastam as redes sociais e os relatos dos amigos que foram aqui e acolá e contam tudo como se nunca ninguém lá tivesse estado. Não. Faço antes um exercício de imaginação, que talvez ajude algum outro viajante que se atreva a atravessar a Península a olhar com outros olhos para as línguas em redor.
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Como seria fazer esta viagem há 70 anos, de carro, sem parar nem falar com ninguém? Um português que a tal se atrevesse, por esses dias, iria atravessar uma Península dividida entre dois Estados que se imaginavam e se mostravam como nações à moda antiga (uma moda que, na verdade, não era assim tão antiga), com uma bandeira, uma história, uma língua. Nós, portugueses, não tínhamos maneira de saber que, em Espanha, esta visão era especialmente redutora.
Encontraríamos, logo depois da nossa fronteira, uma paisagem linguística claramente diferente: do lado de cá, tudo estava em português; do lado de lá, tudo estava em espanhol (seria assim que chamaríamos, quase invariavelmente, a língua) — e em espanhol continuaria até à fronteira com França, ali no meio das montanhas. Nessa linha, veríamos uma nova mudança brusca: tudo em espanhol até à linha milagrosa que tudo muda — e a partir daí tudo em francês.
Andorra, sim, seria uma pequena anomalia — mas, na nossa visão da época, encontraríamos por lá espanhol e francês num território que era, para nós, espanhol e francês. Quem nos falasse do catalão estaria a falar dum dialecto, claro. Línguas têm nomes de países. O catalão era uma espécie de espanhol, não era uma língua.
Mais: pensávamos que tinha sido assim desde sempre, ou seja, desde o início das óbvias nações em que nos dividimos. Na nossa cabeça, Camões, se atravessasse os Pirenéus, também encontraria uma clara fronteira entre um país chamado Espanha e um país chamado França. Nos momentos mais distraídos, até imaginávamos que Afonso Henriques mostrava o passaporte para entrar em Espanha.
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Imaginemos agora a mesma viagem não há 70 anos, mas antes há 700 anos. O exercício é muito mais difícil. Há diferenças em que nunca pensámos.
Cada pedaço de caminho seria diferente do anterior, sem nenhum tipo de padronização, sem indicações de distância, sem placas, sem regras de trânsito comuns — e, claro, sem nomes de terras bem indicados em placas de alumínio. Não havia sequer estradas, pelo menos como as entendemos hoje.
A própria noção de fronteira era diferente. Quem viajasse de Portugal a Andorra não encontraria fronteiras como as entendemos hoje. A separação era mais difusa e não uma linha precisa entre marcos enterrados na terra ou desenhada num mapa. Não encontraríamos uma placa ou bandeiras dum lado e do outro.
Os hábitos iam mudando gradualmente, analogicamente, desde a alimentação à hora. Sim, as horas eram diferentes de terra para terra. Não havia uma hora nacional (o adjectivo nacional aplicado a um reino não faria muito sentido). A hora definia-se pelo sol e o sol levanta-se e põe-se em momentos ligeiramente diferentes de terra para terra. Os viajantes não se importavam: o caminho demorava tanto tempo que as horas diferentes nem se notavam.
Padronização: era isso mesmo que não havia. A modernidade é o tempo dos padrões.
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Esta falta de padrão também se via na língua. Havia, claro, os velhos padrões de outros tempos, o latim e o grego da escrita (e ainda o hebraico e o árabe). Mas as línguas faladas pela população ali em redor dos Pirenéus não tinham padrões fortes e, muito menos, fronteiras claras entre si.
Nos Pirenéus, tínhamos, encostado ao Atlântico, o basco, nas suas imensas variantes; mais para o Mediterrâneo, encontrávamos várias formas da langue d’oc, do occitano, se olhássemos para norte, e o aragonês e o catalão a sul. Estas são designações comuns, mas na altura as separações, como disse, não eram claras. O catalão, por exemplo, partilha muitas características com o occitano. O aragonês serve de ponte entre este e o castelhano.
Os vários poderes — condes e reis, por exemplo — usavam algumas destas formas, que ganhavam um prestígio particular, ainda não suficientemente forte para ser um padrão, tanto que a escrita ainda era dominada pelo latim. Alguns escritores começavam a usar o vernáculo e as suas escolhas particulares também ganhavam algum prestígio. O catalão foi uma importante língua literária medieval — bastava ter sido a língua de Ramon Llull — e o occitano tinha, na forma de provençal (uma variante mais para os lados dos Alpes), um prestígio literário que ainda hoje se faz sentir.
Neste mundo de continuidades, havia algumas mudanças bruscas. O basco era muito diferente das línguas dos arredores, mas mesmo esta separação era bem mais porosa do que possamos imaginar. Em certas zonas haveria muita gente que falava uma forma de basco, mas também aragonês, castelhano ou occitano. Andando mais para o interior, o número de pessoas que saberia falar outra língua iria diminuindo, até encontrarmos aldeias em que só se falaria basco.
A gradualidade não era só na língua, mas também no conhecimento de outras línguas dos arredores. Haveria muita tradução informal entre vizinhos. As separações radicais entre territórios de uma língua e territórios de outra seriam raras, mesmo em terrenos tão acidentados como os Pirenéus.
A oralidade também seria pontuada por misturas constantes entre falares, com aproximações e distanciamentos variáveis conforme a origem da pessoa, a situação particular, a relação entre quem falava. (Afinal, não mudámos assim tanto.)
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No mundo contínuo da Idade Média, irrompeu uma fúria de padronização. As razões foram várias.
A imprensa deu uma força à escrita nas línguas vernáculas que permitiu a criação de hábitos tipográficos próprios de cada uma, que viriam a cristalizar-se em ortografias padronizadas.
As várias coroas, muitas delas com projectos imperiais, começaram a querer enfeitar-se com jóias literárias semelhantes às dos antigos poderes clássicos, usando não só o latim, mas também formas particulares das línguas faladas.
A Revolução Francesa criou a ideia moderna de Nação, uma entidade colectiva idealmente identificada com um território, uma história, uma língua e um Estado e não tanto com um soberano.
A Assembleia Nacional francesa, saída da revolução, chegou a discutir se os novos ideais deviam transmitir-se a todo o território usando as várias línguas francesas — e eram muitas — ou se a língua de Paris devia ser escolhida para todo o território. Já sabemos qual foi a decisão.
Napoleão, mais tarde, tentou exportar a toda a Europa a fúria de padronização. Se era possível uma França redesenhada de alto a baixo, porque não uma Europa? Falhou, é certo, mas a tendência para a padronização manteve-se dentro de cada Estado — e o francês e uma certa ideia centralista da cultura e do Estado espalharam-se pela Europa.
O romantismo deu força às ideias nacionais, com base numa interpretação particular da História, reimaginando a História das nações à medida dos Estados — ou tentando redesenhar os Estados à medida de cada nação desejada. Este alinhamento entre Estado e Nação foi um ideal raramente cumprido na perfeição, mas estabeleceu-se como padrão político.
A cada um destes Estados-Nação corresponderia uma língua. A partir daí, a identificação entre nação e língua tornou-se muito forte. No caso da França, a política estatal foi, durante muito tempo, de repressão activa das outras línguas, que já teriam sérias dificuldades num mundo moderno em que, nos séculos seguintes, a capital de cada Estado veio a exercer um poder cultural fortíssimo através da imprensa, das escolas, da rádio, da televisão…
A repressão nem sequer seria necessária — e, no entanto, foi imitada em muitos países, a começar por Espanha.
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Os comboios foram uma força de padronização importante. As horas passaram a ser as mesmas em todo o Estado. Ao mesmo tempo, as línguas nacionais também viajaram por todo o país. O francês chegou aos Pirenéus em força. O espanhol juntou-se-lhe do outro lado, vindo da Meseta.
Esta vitória do modelo nacional nos vários países da Europa — as próprias palavras que uso partem desse modelo: tanto «país» como «nacional», neste sentido estatal, são recentes — fez-se também na visão do passado. De repente, cada Estado era uma nação e tinha uma História antiga, inevitável. A Espanha já existia desde sempre; a França era uma entidade mítica.
Tornámo-nos cegos perante a variação linguística. O que não era nacional não era bom. O que não era francês ou espanhol era patois, dialecto — ou estava simplesmente errado.
A padronização chegou aos mapas: começámos a ver as formas dos países, bem delineadas por fronteiras. As fronteiras passaram a ter cancelas, os viajantes começaram a levar passaportes dos seus países. Dentro de cada Estado, as diferenças, as leis diferentes, os costumes — tudo começou a tender para a uniformização.
Nos Pirenéus, ao longo do século XVIII e XIX, as montanhas passaram a representar a separação entre dois Estados que se imaginaram como nações. Andorra manteve-se como pequeno rasgo nesse tecido a duas cores, um rasgo que permitia ver o que estava por baixo.
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E o que estava por baixo era esse mundo contínuo, rugoso, interessante, muito pouco padronizado. Neste mundo por baixo da história simplificada dos países, cada um sabia o falar da sua terra, o falar das terras do lado e ainda, uma minoria, o falar que o Estado escolheu para padrão.
Se as cidades assumiram rapidamente os padrões, as aldeias mantiveram as velhas línguas — até a Virgem Maria falou em bearnés, uma forma de occitano, quando apareceu a Bernardette Soubirous numa gruta em Lourdes. Em Lourdes, não: em Lorda.
Hoje poucos se lembram de que, no início do século XX (sim, vinte), muitos franceses não sabiam francês e muitos espanhóis não sabiam espanhol — todos falavam alguma língua, algumas com histórias bem antigas e literaturas de tradição medieval, mas não sabiam aquelas línguas em particular, que tiveram a sorte de ser escolhidas pelos Estados respectivos.
Algumas dessas línguas não estatais começaram a ser defendidas por falantes com algum poder, passando por processos de padronização, mesmo sem um Estado por trás, inspirados pelos mesmos ventos da revolução e, depois, do romantismo que impeliram a valorização e a padronização das línguas estatais.
Nos últimos dois séculos, línguas como o galego, o catalão e o basco, tão ou mais antigas como as línguas dos Estados, ganharam também todo o aparato normativo, com mais ou menos dificuldades. O que surpreenderá algumas pessoas convencidas de que estas línguas são fenómenos modernos é que o tenham feito tão pouco tempo depois das línguas dos Estados.
Particularmente em Espanha, as línguas não estatais ganharam alguma força literária durante o final do século XIX e inícios do século XX. Na oralidade, nunca a tinham perdido, sublinho mais uma vez.
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O império contra-ataca. O franquismo, durante algumas décadas do século XX, tentou apagar activamente as línguas não castelhanas do espaço público, seguindo técnicas que vinham da França pós-revolucionária. É desses tempos que vem a nossa imagem muito límpida da Espanha em espanhol.
Era esse mundo espanhol que o viajante entre Portugal e Andorra de há 70 anos encontraria na sua viagem aos Pirenéus — mas só na escrita. Se tivesse paciência para sair do carro e falar com as pessoas, encontraria muito catalão, muito aragonês, muito occitano e muito basco pelos Pirenéus fora (e também castelhano, claro está), às vezes a sair da boca da mesma pessoa.
O viajante de hoje em dia já encontra muitas destas línguas também na escrita, mas já as ouve um pouco menos na oralidade.
Em Andorra, encontra algo curioso: o pequeno país tem, desde 1993, uma constituição moderna, sendo hoje um Estado com tudo o que tal implica, incluindo a capacidade — e a vontade — de ter uma política linguística própria. A língua de Andorra é o catalão, que ocupa todo o espaço público, dos avisos à publicidade, e é a língua oficial, do ensino e da comunicação social.
Nas ruas, como sempre, o que temos é a rugosidade da linguagem humana. Encontramos pessoas a falar catalão, outras a falar castelhano, várias a falar português, ainda umas palavras de francês, entre outros idiomas com e sem nome e conversas misturadas em que todos se vão entendendo. Habituados a viagens de outros tempos, há turistas mais distraídos que nem notam que o espanhol não é a língua dos andorranos.
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Uma viagem de Portugal aos Pirenéus atravessa dois mundos linguísticos sobrepostos.
Há o mundo daquilo a que chamo utopia monolingue, que imagina cada território com uma língua uniforme e bem distinta das demais (também chamado nacionalismo linguístico). Este é o mundo das placas da estrada, dos mapas límpidos das línguas de cada país, em que os idiomas são entidades discretas, com palavras e regras que mudam na fronteira e uma ou outra expressão local e folclórica, que aparece de forma controlada.
Esta utopia também se vê nas obras literárias ou nos filmes e séries em que todos falam a mesma língua sem misturas, ou então com misturas ordenadamente assinaladas com itálico ou apenas numa fala solta no meio de conversas.
É uma utopia que todos, para o bem e para o mal, partilhamos.
Em muitos casos, os sintomas desta utopia são apenas uma vaga cegueira linguística perante a variação, provocada pela importância dada ao padrão, que é um instrumento muito útil, e ainda uma certa confusão entre variação e erro.
Noutros casos, é uma utopia perigosa, principalmente nas mãos de quem deseja ardentemente um Estado a uma só língua e identifica os falares ou línguas que não tiveram a sorte de estar próximos do padrão com incorrecção, ignorância ou mesmo traição.
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Há um segundo mundo, que encontrávamos às claras na Idade Média e está hoje ainda um pouco escondido debaixo das línguas padrão. Nesse mundo, cada aldeia tem uma forma ligeiramente diferente de falar e cada língua mistura-se com a do lado. Um mundo em que a mesma pessoa fala várias línguas.
Este é um mundo de sempre, tão humano como a roupa ou o caminhar, que nunca vai desaparecer por completo — até porque mesmo as línguas padrão estão sempre a borbulhar. É um mundo que alguns vêem como ameaça às línguas ensinadas na escola, embora os padrões nunca tenham tido tanta força como hoje.
Entre os Estados dos Pirenéus, a França parece-me ter hoje uma relação mais fácil com esse mundo das outras línguas, talvez porque o francês ganhou uma posição absolutamente dominante. As línguas não têm qualquer uso oficial, sendo relegadas para situações de cariz folclórico.
Em Espanha, é tudo mais complicado: os falantes das línguas não estatais tentam manter as possibilidades de defesa das suas línguas que ganharam nas últimas décadas, incluindo o uso oficial em várias situações, mas a insegurança dos falantes de castelhano é muita, apesar de falarem a língua que, agora, todos aprendem.
Num ano em que um júri espanhol fez o pino para não enviar uma música em galego à Eurovisão, a França encolheu os ombros e não se importou com uma canção em bretão — mas nem pensar em usar o bretão como língua oficial…
Em Andorra, a língua catalã tem um Estado que a toma como sua, com tudo o que isso implica. Ao mesmo tempo, é um país onde várias línguas saem da boca de quem passa por nós na rua.
Os Pirenéus são um território interessantíssimo, fronteira e encontro de muitas histórias e muitos idiomas.
O francês e o espanhol são como dois tecidos a esconder a rugosidade do terreno, cosidos numa linha clara. Os dois tecidos, depois dos tempos áureos de meados do século XX, estão agora um pouco mais transparentes, deixando ver por baixo não só a langue d’Oïl e o falar de Castela, mas também, todas elas em vários sabores, línguas como o catalão, o occitano, o aragonês e o basco — as cores fortes e líquidas da linguagem humana.
Essa transparência, essa maior visibilidade na escrita engana-nos: no dia-a-dia, o castelhano e o francês nunca tiveram tanta força. Também por isso vale a pena reparar e dar valor às outras línguas que se escondem nas montanhas — e um pouco por todo o lado.
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Num dos dias em que estivemos em Andorra, pus-me a observar o meu filho Simão a jogar futebol com outras crianças que por lá estavam a passar férias. Ouvia-se castelhano, catalão, português, inglês e até turco. Tentavam todos aproximar as palavras e ganhar o jogo. No final, já estavam a discutir se tinha sido golo ou não numa língua sem nome. O meu outro filho, o Matias, de quatro anos, dizia «grácias» (ou seria «gràcies»?) a torto e a direito e dizia-nos que aquelas pessoas falavam grácias. Um bom nome para uma língua.
Na manhã seguinte, fomos brincar com a neve. Estacionámos em Pas de la Casa, ao lado de uma loja. Vimos, ao fundo, uma pequena encosta onde apetecia mesmo descer no trenó que trazíamos na bagageira. Quando lá chegámos, percebemos pelas placas na estrada que já estávamos em França. Não fez mal: o carro ficou uns minutos em Andorra e nós brincámos na neve francesa.
A caminho, o Simão encontrou a linha dos países marcada na estrada. Talvez nunca se venha a esquecer do dia em que teve um pé de cada lado de uma fronteira perdida no meio da neve.
Também me lembro de ter atravessado aquela fronteira há muitos anos, com os meus pais. Fui a Andorra a pensar naquela viagem antiga, mas claro que era impossível revivê-la. As viagens não se repetem. Esta foi uma viagem nova, a viagem das recordações dos meus filhos (e nossas também). Não imagino que recordações serão essas, tal como os meus pais não imaginavam que o filho mais velho iria lembrar-se, mais nitidamente do que tudo o resto, daquilo que ouviu num quarto de hotel.
E que ouvi eu em 1994? Nada de embaraçoso: ali estava de férias, convencido de que naquele principado, como acontecia com as moedas (podíamos usar pesetas e francos), também as línguas eram a duplicar: os andorranos falavam espanhol ou francês, à escolha.
A duplicar? Mal sabia eu… No quarto, liguei a televisão e ouvi uma locutora a falar numa língua que não era nenhuma das duas, uma língua em que aquilo que via da janela era «la neu de les muntanyes». Franzi as sobrancelhas. O que era aquilo?
Quis saber — e nunca mais perdi a pancada das línguas todas.
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é História do Português desde o Big Bang.
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