Já há algum tempo que desconfiava não ser filho de quem a minha mãe dizia ser o meu pai. Nos últimos tempos, fui juntando algumas peças e percebendo que havia outro a zelar pelo meu bem-estar e que isso só podia ser sinal de que era o meu verdadeiro pai. Tinha razão e, ao que parece, o meu verdadeiro pai chama-se Estado. O Estado é uma espécie de pai bipolar: ausente nas questões que interessam, mas galinha e que se preocupa com os seus filhos, almofadando todos as esquinas aguçadas para que ninguém se aleije.
Como pai extremoso e preocupado, proibiu-me de comer doces e fritos nos hospitais públicos. Não é que o estado da minha saúde o preocupe, já que se assim fosse melhoraria as condições dos hospitais, mas é mais numa perspectiva de não gastar dinheiro comigo num futuro em que me possa tornar obeso diabético e ter um AVC por sobredosagem de croquetes. Enquanto o meu pai adoptivo me deu as ferramentas para pensar pela minha cabeça e de tomar decisões livremente, o meu pai verdadeiro parte do princípio que eu sou burro e que não sei cuidar de mim, mesmo quando já sou um adulto independente. Por um lado, percebo, já que ele tem muitos filhos e que a maioria deles nasceu com defeito e tem um QI abaixo da média; por outro, parece-me estapafúrdio proibir um Donut a alguém que acabou de sair de uma sessão de quimioterapia ou um folhado misto com cobertura de chocolate a quem acabou de colocar uma banda gástrica.
Nos últimos anos, a rigidez deste pai tem vindo a aumentar. Há uns tempos decidiu reduzir a quantidade de açúcar nos pacotes comummente utilizados para o café. Recentemente, abriu guerra contra o sal, chegando até a fazer uma campanha com esses grandes influencers: Jorge Jesus e Ana Malhoa. Percebo que o azeite seja uma gordura saudável e que um bom tempero substitua o sal, mas em excesso também provoca obesidade. Este meu novo pai quer, até, proibir os saleiros nas mesas dos restaurantes. Não bastava já quando tinha de esperar que o empregado de mesa olhasse para mim, depois de passar ao lado dez vezes, para lhe pedir o picante, e agora vou ter de perder tempo a pedir-lhe o sal. Este meu novo pai gosta de varrer os problemas para debaixo do tapete. É aquele tipo de pai que manda o filho de castigo para o quarto, quando é no quarto que ele passa o dia inteiro a jogar Playstation.
Dito isto, há que dar algum crédito ao meu pai Estado: a medida de aumentar impostos em produtos com muito açúcar ou sal não me parece descabida. Se um fumador paga mais impostos no maço de tabaco, é bom que se taxem da mesma forma alimentos com ingredientes que em excesso causam mais mortes do que o tabaco. O meu pai verdadeiro sempre foi um bocado hipócrita, especialmente com o tabaco. Não proíbe a venda, mas coloca mensagens em destaque e imagens de pessoas a morrer. «Filho, olha que isto mata, mas o pai vende, mas tu só compras se quiseres, mas olha que isto faz um mal terrível e vicia, olha estas pessoas doentes, mas o pai lucra com isto e não é pouco, por isso vou só deixar aqui em cima da mesa e tu se quiseres fumas e pagas, ok?». É um pai que investe mais na punição do que na educação. Este meu novo pai precisa de uma Super Nanny para o ajudar ou, pensando melhor, talvez ele seja a nossa Super Nanny.
E o disclaimer obrigatório em bebidas alcoólicas «Seja responsável, beba com moderação.»? Gostava de saber quantas pessoas foram salvas do alcoolismo devido a essa frase. Quantas mortes se evitaram? «Até bebia mais esse shot de absinto, mas já bebi dez, e diz ali na garrafa para sermos responsáveis e bebermos com moderação.». Tenham juízo, não dou ouvidos aos conselhos da minha mãe e vou dar ouvidos a uma marca que foi obrigada a dizer aquilo, pelo meu pai? Já não bastava o uso obrigatório do cinto de segurança nos carros – e do capacete nas motos – que, a meu ver, é um atentado à selecção natural. Estamos a almofadar as esquinas dos burros e irresponsáveis que são, por norma, os que se reproduzem mais. É deixá-los ir. Queres andar de mota sem capacete? À vontade, força nisso, mas depois se te esbardalhares e ficares sem metade da cara, pagas a totalidade do serviço no SNS ou vais ao privado, que não andamos aqui a sustentar gente que acha que ser cool é mais importante do que a segurança. É por estas que eu nunca posso ter poder porque acabava por ser um pai ditador que começava com a pena de morte para pedófilos, mas ia alargando o critério até chegar ao pessoal que não mete piscas na estrada. No fim, sobrava eu e mais meia dúzia e era uma tristeza.
Como podem ver, fico um pouco triste por perceber que o Estado é o meu verdadeiro pai, um pouco ausente e que não me dá grande coisa em troca. Ele tem hospitais, mas não funcionam grande coisa. Tem escolas, mas estão cada mais negligenciadas. Eu é que lhe sustento aquilo tudo com uma boa mesada de IRS e Segurança Social, sem contar com os IVAs e outros demais impostos, mas quando preciso de alguma coisa que funcione e tenha qualidade, tenho de ir ao meu tio Privado comprar. Até porque em casa desse meu tio, posso comer um Donut com Doritos no hospital depois do jejum para uma colonoscopia.
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