Há coisa de 10 anos, a Teresa Guilherme apresentou uma espécie de concurso televisivo chamado “Momento da Verdade”. Não digo que se tratou dum programa de má memória; felizmente, o termo indicado é o de “programa de nenhuma memória”, tão passageiro foi o seu impacto. Percebo o contra-senso que é estar a relembrar coisas que não deixaram lembranças, mas acontece que descobri um texto de 2008 em que me debruçava na crítica televisiva desse “Momento da Verdade”. Era um programa onde figuravam duas coisas essenciais: um polígrafo e perguntas intrusivas. Aos concorrentes, ligados àquela maquina da verdade, pedia-se que respondessem às questões escandalosas que lhes iam exponencialmente devassando a vida privada. O polígrafo servia para averiguar a veracidade das respostas – a mentira eliminava o concorrente, a verdade encaminhava-o rumo a um prémio avultado.
O que me espantou na altura (e torna a espantar na recordação) é que a crítica mais imediata que o programa me suscitou não tinha que ver com a imoralidade da coisa. Não me detive no grotesco invasivo, nem no chafurdar em lixo a que o concurso se propunha; o que mais me agastou foi o quão chato o programa era. Devassidão chata é simultaneamente o pior tipo de devassidão e o pior tipo de chatice. A realidade humilhante dos outros, deleite secreto durante milénios, tinha-se tornado aborrecida agora que não era secreta. As conclusões que retirei em 2008 fazem-me pleno sentido hoje e lembraram-me a tal historieta da entrevista de emprego. Na altura escrevi “O novo programa da Teresa Guilherme é, acima de tudo, chato. Talvez seja chato por isto: desde que a sinceridade se tornou na mais corriqueira arma de agressão, a Verdade não é com certeza grande entretenimento”.
É provável que 2018 não tenha espaço para esta problemática. Hoje discutem-se fake news, ou os atentados à liberdade de expressão, e eu estou para aqui a desviar-nos de tais temas. É que enquanto essas duas questões andam alarvemente a rebentar o mundo por fora, aquela que eu trago agora anda, furtiva, a minar o mundo por dentro. É uma temática que não é “fake” como as “news”, porque se centra em verdades, naquelas verdades que cada pessoa auto-legitima. E também não é um atentado à liberdade de expressão, é antes o oposto: uma ditadura de expressão. A questão de que falo é a da tal sinceridade que “se tornou na mais corriqueira arma de agressão”. É a questão duma verdade que só parece legitimar-se quando arremessada de forma ostensiva e opressiva.
Diria que isto é um problema dos últimos 50 anos e uma maleita degenerativa. A sinceridade, ou a frontalidade (aquelas que o entrevistador da anedota, ou qualquer um de nós, não veria como defeito), têm vindo a tornar-se instrumentos democratizados de subjugação. Há opiniões, geralmente não solicitadas, que servem para aplacar os apetites sanguinolentos de quem as emite. São frontais, sinceras e resolvem complexos de inferioridade próprios ao tentarem inferiorizar o interlocutor. É muito mais fácil o ego pôr-se em bicos de pé quando encontra alguém em forma de calço para espezinhar. E aí o crime torna-se perfeito, uma vez que se desenrola acobertado pelo manto inatacável da verdade. Se a mentira tem a perna curta, não é muito mais fácil enaltecermo-nos com os pés longos (e espezinhantes) da verdade?
Não estou a fazer qualquer apologia a paninhos quentes, mentiras piedosas ou cobardia de ideias. Não creio que uma opinião tenha de ser suave, nem forçosamente aprazível. A minha embirração passa é pelo modo implacável com que se forjam, e forçam, pareceres sobre tudo e mais alguma coisa. Daí eu ter falado há pouco em ditadura de expressão, pois há um exercício de opinião que deixou de ser facultativo: temos que opinar e temos de ser desagradáveis nessa tarefa — a nossa autodeterminação depende disso. Só somos livres se conseguirmos aprisionar os outros dentro do nosso mau humor; a sinceridade só é válida se for um rolo compressor; o antagonismo passou a assemelhar-se a uma prática indispensável de civismo.
Tenho a certeza que esta frontalidade espinhosa ainda é ignorada por muitos, pelo menos ignorada enquanto pandemia. Talvez da próxima vez que forem alvos duma crítica que, mais do que injusta ou cáustica, é desnecessária, se lembrem disto. Talvez da próxima vez que pensarem “quem é que encomendou o sermão a este gajo?” percebam que não se trata de uma pessoa inoportuna, mas de uma cultura inoportuna vigente.
Se eu disser que esta agressividade anda a sair ensinada nas escolas, não o faço pela força de expressão. Durante os 10 anos em que fui professor, muitos deles a leccionar a turmas de pré-adolescentes, percebi que a nobre máxima escolar de “armar as crianças de espírito crítico” muitas vezes se exprime mais pela palavra “armar” do que pela palavra “espírito”. A estupefacção chegou-me nos finais de período, precisamente na altura em que os alunos fazem a auto-avaliação e hetero-avaliação. Sobretudo nesta última, só me vem à cabeça outro termo hodierno — delacção premiada. Para muitas crianças, mal orientadas pelas expectativas de professores, a avaliação do colega tem de ser feita com aquela sinceridade que é um rolo compressor; a busca e identificação do defeito premeia-se mais que a apreciação da qualidade (que não passa de amizade pueril). Sou favorável a que se cultive a frontalidade, mas não que se ateste a franqueza pela capacidade de rebaixar, e muito menos que se ensine a crítica construtiva através da retórica destrutiva — contra-senso de bradar aos céus.
Talvez tenha feito a denúncia escolar de forma injusta e generalizada, mas os casos que conheci obrigam-me à exposição preocupante. Não me considero, contudo, um alarmista básico, e ainda menos um profeta da desgraça — não teço exageros sobre um mal que aí vem, apenas lamento um mal que já vigora. E por muito que esta minha opinião se confunda com uma apologia de mesuras, ou de hipocrisias diplomáticas, não há como ignorar que falo de um mal. A verdade deixou de ser um instrumento de libertação para ser o nosso arsenal privado de opressão — em nenhum cenário isto é uma coisa boa.
Ingrato é estar a falar de delitos de opinião, e em opiniões não solicitadas, num espaço onde manifesto as minhas. Em meu favor, tenho a certeza que sou mais causador de barafunda que de opressão. Se sobre mim também questionarem “mas quem é que encomendou o sermão a este gajo?” garanto que tenho recibos a provar a encomenda.
SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO
Se fosse falar do Estúdio 21 pela via da simpatia, generosidade e engenho de quem está à frente, então teria de fazê-lo através de uma longuíssima crónica e não no curto espaço das recomendações. Restrinjo-me então a esta afirmação: as coisas raras e espantosas da Madeira não são só o vinho, a flora e pontapés de bicicleta.
A Associação “ Novo Futuro” tem como missão “o acolhimento em pequenos lares familiares de crianças e jovens em risco social, privados de um ambiente familiar seguro, com histórias marcadas pela exposição involuntária a situações de abuso, negligência e maus-tratos físicos e psicológicos, privilegiando-se o acolhimento de grupos de irmãos”. É para esta notável IPSS que vamos fazer o “Concerto Por um Novo Futuro” dia 17 de Maio no Altice Arena. A base será a banda sonora da série televisiva “1986” (onde figuram nomes como os de Ana Bacalhau, Catarina Salinas, David Fonseca, João Só, Lena D’Água, Márcia, Miguel Araújo, Tatanka e este que vos escreve), mas o objectivo real será o da solidariedade. Obrigatório!
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