Como em tantos outros temas difíceis, Portugal tem, acima de tudo, uma cultura de negação. Para tanta gente (curiosamente quase todos homens brancos heterossexuais de fato e gravata e muitos deles comentadores na TV ou até mesmo políticos), neste país perfeito não há racismo, não há homofobia nem machismo, muito menos tal coisa como “cultura da violação”. E como é que se resolvem problemas que não existem, não é verdade? A questão é que para muitas outras pessoas, principalmente para quem é vítima de discriminação e violência, estas coisas são bem reais. E se queremos combatê-las, temos obrigatoriamente de começar por reconhecê-las.

A cultura da violação é o que se chama à permissividade e leviandade com que se encaram os comportamentos de violência de género que, em última instância, suportam a violação. Também há pessoas que troçam quando se diz que, por exemplo, os piropos estão na base da violência machista que mata mulheres, porque fazem o salto directo de uma coisa para a outra e não entendem (ou não querem entender) como socialmente os comportamentos se vão validando consecutivamente, permitindo a sua escalada.

No que é um caso claro de cultura da violação, vimos esta semana o Rui Unas glorificar o Tomás Taveira, que esteve no centro de um escândalo sexual nos anos 1980, altura em que foram divulgados vídeos em que aparecia a fazer sexo com jovens mulheres, filmadas sem o seu consentimento, e onde o arquiteto forçava a continuação da relação sexual ignorando o que estas diziam. Não serve isto para “bater” mais no Unas, que certamente já percebeu o erro que fez, mas sim para vermos tudo o resto que se passou. O Unas tratou Taveira com deferência e admiração, dizendo que um homem não se define pelas "asneiras" que fez na vida. Ora, asneira é dizer isto. Alguém que trata assim o outro é um degredo desumano e claro que define a pessoa que é.

Cultura de violação não é meio país andar a violar literalmente outro meio, mas é achar-se normal glorificar quem é o faz. É haver milhares de comentários na net a chamar “rei” e “mestre” ao abusador. É haver montes de gente a culpar as suas vítimas. É saber-se que havia cânticos da praxe da Faculdade de Arquitectura de Lisboa que exultavam os feitos de Taveira. É aparecerem sempre homens a queixar-se do politicamente correcto por “já não poderem” dizer ou fazer coisas que no seu privilégio achavam normais. E em todos os outros casos, de violência doméstica a assédio sexual, é também o culpar da vítima. É o duvidar da sua palavra sempre primeiro. É a normalidade com que tanta gente olha para a violência de género, ora encolhendo os ombros “porque as coisas são mesmo assim”, ora fechando os olhos “porque mais vale fingir que não existe”, ora normalizando-a com piadas sobre o assunto. 

A cultura de violação é a protecção velada (ou nem tanto) aos abusadores sexuais, à manutenção do poder patriarcal, é normalização da violência de género. É disto que se trata. É disto que temos de falar com urgência – principalmente entre nós, homens, se queremos ter um vislumbre de esperança num país menos violento para tantas mulheres e alguns homens que sofrem com a violência de género.

Sugestões mais ou menos culturais que, no caso de não valerem a pena, vos permitem vir insultar-me e cobrar-me uma jola:

- 25 de Abril: todos os documentários e filmes, todas as canções, todos os abraços fraternos. Feliz 25 de Abril a todos!

- O Problema Espinosa: livro de Irvin Yalom. Agora já o acabei e confirmo que é um livro lindo.

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