Uma questão de sobrevivência
O agente artístico Marco Caneira, hoje com 38 anos, viu confirmada a pena a seis anos e meio de prisão por ter violado uma menor de 14 anos, em setembro de 2016. Após recurso da defesa (com uma argumentação pré-histórica, centrada na descredibilização da vítima e que é um exemplo claro da nefasta cultura de responsabilização da vítima), o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) reforça que “a inexistência de qualquer reação ou resistência de uma vítima de violência sexual radica no facto de esta a sentir a agressão como uma ofensa à sua integridade física, ou mesmo à sua vida, pelo que adota um comportamento orientado para a sua preservação, podendo optar por diferentes estratégias de sobrevivência”.
Esta posição de reconhecimento das diferentes estratégias de sobrevivência é fundamental e central sempre que há um debate sobre violência sexual, seja na esfera pública, política ou judicial. É preciso, cada vez mais, que se compreenda, tal como o TRL complementa, que “a ausência de resistência física por parte de uma vítima de um crime de violação não pode ser considerada como uma forma de aceitação ou consentimento da agressão, mas pelo contrário expressa apenas o desejo de sobreviver a uma situação cujo controle não detém e relativamente à qual experimenta um sentimento de completa impotência”.
A ausência de resistência não pode ser interpretada como consentimento, nem pode ser instrumentalizada para desvitalizar um crime de violência sexual. Antes pelo contrário, compreender que a paralisação por parte da vítima é uma reação normal tem de integrar a matriz que ajuda a enquadrar este crime como uma violação grave dos direitos humanos, crime este que pode gerar consequências devastadoras para a vítima.
Esta realidade tem de passar a ser de conhecimento comum, para que as vítimas encontrem um sistema social e judicial mais recetivo às denúncias e que assim seja feita a devida justiça. Mas também sei que para algumas pessoas, isto não é (ainda) fácil ou simples de assimilar.
Guião de como as vítimas devem reagir
Nas sessões de sensibilização e informação que dinamizamos, no âmbito do meu trabalho na associação Quebrar o Silêncio, é comum ouvir questões e suposições relativamente à forma como as vítimas devem ou não reagir e também comportar-se. “Se fosse comigo aproveitava um momento de distração do violador e fugia”; “porque não foi logo à polícia denunciar? Não é normal esperar tanto tempo”; “não é natural ser violada e ficar ali quieta à espera que o violador termine"; "se ficou parada é porque se calhar queria”, são algumas das questões e dúvidas que ouvimos e que revelam a existência de um guião oficioso sobre como as vítimas têm de reagir, seja durante ou após o crime. Considero que estas dúvidas são naturais quando não existe um domínio sobre a temática da violência sexual e um conhecimento sobre estratégias de sobrevivência e trauma - e é fundamental que discutamos trauma.
Cada pessoa é única e, como tal, cada pessoa reage de forma diferente a uma situação traumática, podendo haver três tipos de resposta: luta, fuga ou paralisação. O que é importante reter é que cada uma destas formas de reação é natural isto é, uma pessoa pode reagir lutando, fugindo ou paralisando. Imaginemos o exemplo de um animal selvagem que ataca um humano. É natural que uma pessoa possa reagir e tentar lutar contra o animal, outra pessoa tente fugir para sobreviver e outra paralise com o medo. O essencial é compreender que todas estas reações são formas de sobrevivência, e que não resistir não significa que a pessoa desejou ser vítima de uma experiência traumática.
Nos casos de violência sexual, o mesmo pode acontecer. Se é certo que há vítimas que tentam fugir, lutar contra o abuso ou resistir, também temos de reconhecer (e o quanto antes) que paralisar também é uma forma natural de sobrevivência. E temos que deixar de criticar as vítimas que numa situação de violação congelam e permanecem imóveis. A paralisação não pode ser nunca interpretada como consentimento; é uma resposta que expressa, tal como o TRL referiu, “o desejo de sobreviver a uma situação cujo controle não detém e relativamente à qual experimenta um sentimento de completa impotência.”
Consequências negativas dos juízos de valor
Sabendo que a maioria dos casos não são denunciados, é importante que, enquanto sociedade, demonstremos empatia pelas vítimas em vez de as julgar por não corresponderem a determinadas expectativas comportamentais.
No apoio que prestamos aos homens vítimas de violência sexual na associação Quebrar o Silêncio, é comum ouvirmos homens que se culpabilizam porque sentem que, de alguma forma, deveriam ter resistido e não foram capazes, ou porque paralisaram. São ideias que vão sendo internalizadas pelos sobreviventes por reprodução e pressão social, e que se tornam um obstáculo à procura de apoio, mas também no processo de recuperação do trauma. Aos poucos, vamos desmistificando estas ideias através de acompanhamento psicológico.
Um dos efeitos negativos da existência destes “guiões” é que coloca o ónus em quem sofre o crime, alimenta a cultura de responsabilização da vítima e contribui para a manutenção do seu silêncio. Sabemos que os homens demoram, em média, entre 20 e 30 anos até procurarem apoio, sofrendo as consequências do trauma durante esse longo período de tempo.
No caso dos homens, estas questões são reforçadas pelas ideias estereotipadas associadas à masculinidade tradicional. Persiste ainda a crença, errada, de que um homem ou rapaz não pode nunca ser vítima de violência sexual, porque “homem que é homem” é forte, resiste e luta, e “não se deixa ficar”. São questões que acabam por reforçar a invisibilidade desta realidade, como se um homem que seja vítima de abuso sexual seja uma raridade ou um caso isolado. E sabemos que isto não é verdade. As evidências apontam para que 1 em cada 6 homens tenha sido vítima de alguma forma de violência sexual antes dos 18 anos, e em dois anos a Quebrar o Silêncio recebeu 146 pedidos de apoio.
Na associação Quebrar o Silêncio prestamos apoio especializado para homens vítimas de violência sexual. Se foi vítima de abuso sexual, na infância ou em idade adulta, contacte-nos através do email apoio@quebrarosilencio.pt ou da Linha de Apoio 910 846 589. Os nossos serviços de apoio são confidenciais e gratuitos.
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