A delícia das coisas imperfeitas

Há muitos anos, li um conto de Eça que me deixou atarantado: A Perfeição.

No conto, Eça pega num dos episódios da Odisseia e conta como Ulisses, preso pela deusa Calipso, na ilha de Ogígia, vive uma vida de prazeres sem fim, rodeado de perfeição por todo o lado. É o sonho de qualquer homem — a natureza a explodir de verde, mesas sumptuosas ao almoço e ao jantar, deusas belíssimas ao seu redor para toda a vida… Uma vida de deus grego!

E, no entanto, Ulisses quer voltar para casa. Ulisses quer a imperfeição humana. O conto termina com a felicidade de quem se faz ao mar, para fugir da perfeição e atirar-se para «a delícia das coisas imperfeitas».

Procure o conto de Eça — é ironicamente perfeito. Vá, deixe esta crónica de lado e leia antes o conto! Não me importo!

Um copo de café vindo do futuro

Ficou por cá? Fez mal. Mas enfim, pode sempre ler o conto a seguir. Enquanto não o faz, deixe-me falar da Guerra dos Tronos. Não, não vou dizer nem bem nem mal da série — parece que há uma necessidade qualquer que leva muitos a declarar o amor ou o ódio a essa série em particular. Quem vê, não pensa noutra coisa. Quem não vê, precisa de estar constantemente a dizer que não vê.

Pois bem: veja ou não veja a série, talvez já tenha ouvido falar do Grande Escândalo do Copo de Café (que parecia do Starbucks, mas afinal não é).

Muitos fãs gritaram: como é possível? Como é possível que, numa série em que cada episódio custa milhões, ninguém tenha reparado num copo de café moderno num mundo a dar para o medieval? Na Idade Média, sabemos que havia dragões, magia negra e tranças perfeitas — agora café?

Sim, como é possível?

E, no entanto, não só é impossível, como é bastante provável… Para perceber isso, temos de falar de Uri Geller!

Como enganar telespectadores

Uri Geller… Sim, o “mágico”. Deixei a palavra entre aspas, porque um mágico a sério não finge que a magia existe. Sabe — e di-lo — que é um ilusionista. Trabalha com a nossa imensa capacidade de ilusão.

Já Uri Geller dá a entender, muitas vezes, que tem mesmo poderes extraordinários, para lá da capacidade de mexer as mãos muito depressa e imaginar maneiras de nos enganar. Uri Geller não é um Luís de Matos —  Luís de Matos espanta-nos, Uri Geller engana-nos.

Pois bem: um dos truques do “mágico” israelita é este: pede, em directo, para que os espectadores vão a uma gaveta qualquer buscar um relógio que não trabalhe. Diz uns disparates supostamente mágicos e pede que todos aqueles cujos relógios comecem a trabalhar de novo telefonem para os estúdios.

E o certo é que os telefones tocam! Tanta gente com relógios avariados que começam magicamente a trabalhar!

Como duvidar de qualquer coisa que está perante os nossos olhos? Ora, os nossos olhos enganam-nos. E às vezes é a matemática que nos ajuda a perceber a verdade. Uri Geller está a usar o poder dos grandes números… Se ele tiver uns largos milhares de espectadores em frente ao ecrã e lhes pedir para irem buscar relógios avariados, é muito provável que umas quantas centenas de pessoas tenham mesmo relógios parados na gaveta — e é também muito provável que uns quantos relógios desses comecem a trabalhar naquele momento, com o movimento.

Reparemos: é improvável que um relógio em particular comece a trabalhar naquele momento. Mas, quando temos centenas ou milhares de relógios, não é nada do outro mundo que uns cinco ou seis comecem a trabalhar. E, se virmos bem, bastam cinco ou seis telefonemas para impressionar: só pode ser magia.

Quando temos números grandes, o improvável torna-se quase inevitável.

Tanta Gente, Daenerys!

O que tem isto que ver com a Guerra dos Tronos? Ora, para começar, é uma série feita por centenas de pessoas, ao longo de muitos anos, com dezenas e dezenas de horas de emissão (pelas minhas contas, serão mais de 70 horas de filme). Imagino que uma série com 70 horas tenha, em geral, muitas gafes destas. Se o copo de café é o primeiro erro deste tipo, o perfeccionismo de quem faz a série é espantoso!

Ora, o copo aparece durante uma fracção de segundo, num canto muito discreto — como é que alguém o encontrou? Lá temos os grandes números: a série é vista por milhões e milhões de pessoas — só nos Estados Unidos, parece que chega a ser vista por mais de 30 milhões de pessoas por semana. Não é preciso haver ninguém especialmente atento — basta ter tantos milhões de pessoas a olhar para as mesmas imagens. Algumas delas estarão, por mera consequência de haver tanta gente a ver o mesmo, a olhar para aquele ponto do ecrã em particular. Daí, avançam para as redes sociais — e parece que, de repente, todos reparámos no tal copo…

Quando uma série é vista por tanta gente, tem mesmo de ter um cuidado especial com todos os pormenores. As próprias línguas inventadas têm gramáticas completas e sistemas fonéticos bem definidos, porque — como diz o autor dessas línguas, David J. Peterson — haverá sempre alguém com paciência (e tempo) para analisar as falas e encontrar erros nas frases em línguas de ninguém.

E o Eça?

Ora — o Eça estava ali no início da crónica para que eu agora pudesse zurzir na HBO, dona da série. Então não é que foram apagar o copo? Que ele já não está lá? Pelo amor dos Sete Deuses: porquê? Naquele copo ali à mostra, vi um pormenor delicioso, um pequeno erro que nos lembrava que a série mais cara da televisão é feita por seres como nós, que às vezes erram. No caso dos produtores duma série como aquela, erram pouco, mas erram.

São as tais delícias das coisas imperfeitas — das coisas humanas.

Marco Neves | Escreve sobre línguas, livros e outras viagens no blogue Certas Palavras. O seu livro mais recente é Gramática para Todos — O Português na Ponta da Língua.