O campeonato português de futebol da época de 1927-28 poderá valer, 90 anos depois, o título de campeão nacional (ou outro que vier a ser reconhecido) ao Carcavelinhos Football Club, que junta assim, caso se opte pela primeira decisão, o seu nome à galeria de notáveis do futebol português. Uma galeria onde cabem os “Três Grandes”, Benfica, Porto e Sporting, o Belenenses (1945-46) e o Boavista (2000-01). E se for esse o raciocínio, deverá o mesmo ser seguido para Marítimo e Olhanense que se devem juntar à elite futebolística nacional. Para além de nova distribuição de “louros” entre Sporting, Porto, Belenenses e Benfica.
Em 2018, 90 anos depois da tal conquista, espero que se faça justiça, ou que, pelo menos, seja reconhecido um qualquer outro título ao Carcavelinhos, e por arrasto, aos madeirenses, algarvios e aos demais clubes em causa. Mas para que tal suceda ainda falta “um quase tudo”. Passo a explicar.
Terá que aguardar, primeiro, pelas conclusões da comissão técnica independente criada, finalmente, pela Federação Portuguesa de Futebol (FPF) para estudar a categorização das competições internas, conclusões essas que serão posteriormente apresentadas e ratificadas em Assembleia-Geral, e esperar que esta mesma AG dê uma resposta, espera-se que final, para a questão dos títulos nacionais de futebol, catalogando-os. Quem ganhou o quê e quantos troféus tem cada clube.
Esta discussão dos títulos nacionais e da categorização das competições nacionais não é de agora, embora Bruno de Carvalho, presidente do Sporting Clube de Portugal, tivesse colocado (e bem) o tema na agenda, pedindo, publicamente, o reconhecimento oficial do campeonato de Portugal (realizado entre 1921 e 1938, num total de 17 edições) como a competição antecessora do Campeonato Nacional da 1.ª Divisão.
Sobre a legitimidade dessa equiparação, ou em última análise, de uma nova catalogação, esta deve ser ancorada na leitura de fontes e de interpretação das mesmas. A saber, por exemplo, no que foi publicado nos órgãos de comunicação social (onde nasceu a discussão) à época e ao longo dos anos, por um lado, e interpretar, de vez, uma famosa ata e os regulamentos de 1938-1939 elaborados pela entidade organizadora das competições, no caso concreto, a Federação Portuguesa de Futebol, entidade que para além dessa produção jurídica nunca tomou posição oficial. E poderá ainda “beber” do possível contributo de estudiosos e historiadores do futebol, onde se incluem jornalistas e, em última instância, olhar para fora do país e ver como outros campeonatos lidaram com a questão dos campeões.
As contradições jornalísticas. Da dúvida do 1º ou 18º campeonato ao salto quantitativo em 2004
Reconhecendo que há vozes em sentido inverso nas mesmas fontes aqui citadas, recuando à época (década de 20 e 30 do século passado), os jornais desportivos (Os Sports) e generalistas (Diário de Lisboa) noticiavam os títulos deste campeonato de Portugal como o “campeão de Portugal”, registando-os como o título máximo do futebol português.
Tal foi escrito inclusive nos anos em que a prova decorreu em simultâneo com o Campeonato da Liga, uma prova experimental com duração de quatro anos (1934/35 e 1937/38) que serviu para a FPF aferir da viabilidade financeira de uma competição de âmbito nacional, uma prova em duas “poules”, fechada, à época, a clubes de quatro associações, Lisboa, Porto, Coimbra e Setúbal, ao contrário do campeonato de Portugal, mais abrangente a nível nacional, embora se realizasse num sistema de eliminatórias.
O jornal “Os Sports” chegou ao ponto de levantar a dúvida no ano do arranque do Campeonato Nacional 1938-39 (durante muitos anos considerado como o início das competições que catalogavam o campeão nacional) se era o primeiro ou o 18º, retirando destas contas a “tal” Liga, de caráter experimental.
Desde então, naquilo que os jornais desportivos, “A Bola” (1945), “Record” (1949) e o “O Jogo” (1985) escreveram sobre a questão dos títulos – campeonatos de Portugal, nacional, Liga experimental e Taça de Portugal – não se verifica consenso estatístico. Em especial a partir da época 2004/05, temporada do “salto quantitativo” de troféus por parte do Sport Lisboa e Benfica (ano, a partir do qual, entram na contabilidade dita oficial os três títulos do campeonato da Liga conquistado pelas águias e um por parte do Futebol Clube do Porto).
Curioso referir a este propósito, que o jornal “Record”, 10 anos antes (1994), aquando do então último campeonato das águias, noticiava o 27º conquistado. E uma edição do jornal “A Bola”, uma encadernação “Glória e Vida de Três Gigantes”, editada em 1995 e comemorativa dos 50 anos daquele órgão de comunicação social, distinguia os títulos – campeonato da Liga e campeonato da 1ª Divisão. Não os somava.
O fim do silêncio de quem organiza e a interpretação da ata e regulamentos
Do lado de quem organiza as competições, a FPF, nunca se pronunciou publicamente sobre a discussão, sendo, por isso, de saudar a iniciativa de tentar colocar um ponto final nesta discussão que se eterniza.
E a propósito daquilo que emana por parte de quem rege o futebol português, há um documento federativo (ata) a carecer de interpretação. Serve esta, ou não, para confirmar o reconhecimento desses títulos do campeonato de Portugal. Dá, ou não, o direito de equiparação ao de campeão nacional ou deverá servir para somar a outros, no caso, à Taça de Portugal (prova que segundo a própria Federação, lhe precede).
E há os regulamentos de 1938-39 que põe fim ao campeonato da Liga e ao campeonato de Portugal, hierarquizam e catalogam as competições, leva à criação do Campeonato Nacional da 1ª e 2ª Divisão (por substituição da Liga experimental) e à criação de uma nova prova, por eliminatórias, a Taça de Portugal, por extinção de outra, do campeonato de Portugal que se realizava nos mesmos moldes.
Para ambos os documentos, pede-se uma leitura que terá que ser feita com os olhos e espírito da época. O busílis da questão deverá ser: qual era a prova mais importante à época, que servia para reconhecer o melhor de Portugal. Seria uma prova mais abrangente, embora realizada por eliminatórias (Campeonato de Portugal) ou, nos anos em que coincidiram, uma prova com menor representatividade e expressão nacional (Liga), por sistema de “poules” e que serviu de teste?
Deixando a interpretação do espírito da lei para as questões do Direito, devemos recuperar o que foi produzido pela própria entidade federativa. E aí temos o livro “1.º Centenário do Futebol Português”, da autoria de Henrique Parreirão, a propósito dos 75 anos da FPF (Bodas de Diamante), que aponta a quem venceu o campeonato de Portugal como sendo os vencedores do título máximo do futebol nacional.
Por fim, o site da FPF escreve que em 1922, foi criado o primeiro campeonato de futebol (Campeonato de Portugal) organizado pela UPF (União Portuguesa de Futebol, que antecede a FPF) e que os vencedores desta competição eram considerados os campeões da modalidade em Portugal. Escreve igualmente que na época 1938-39, o Campeonato de Portugal foi substituído pela atual Taça de Portugal.
Referir ainda os historiadores e estudiosos do futebol, incluindo-se no lote jornalistas. Poderemos citar, por exemplo, nomes grandes dos jornais, como Ribeiro dos Reis e Ricardo Ornelas, a quem a FPF pediu para pensar os moldes de uma competição nacional, sendo que Ornelas, a bem da verdade, defendia nas páginas do “Os Sports” que deveriam ser os campeonatos da Liga que deveriam contar como legítimos, Alberto Miguéns, Ricardo Serrado ou João Nuno Coelho.
A maioria inclina-se para considerar os títulos da prova que durou quatro anos como legítimos títulos de campeão nacional (atribuindo três títulos às águias e um ao Futebol Clube do Porto). Curioso é, também o facto de num livro de cariz oficial, o “Almanaque do Leão”, o autor, Rui Miguel Tovar, atribuir somente 18 títulos aos leões (a obra “sofreu” uma segunda edição em que soma os tais títulos reclamados embora sem o aval do autor).
O exemplo alemão e italiano
Sobre o tema da contabilidade de títulos nacionais há igualmente, publicações ao longo dos anos, de oficiais ligadas a clubes a livros mais ou menos científicos, artigos escritos nos jornais dos clubes ou nos sites, dissertação vária em blogs afetos a cada uma das partes interessadas, uma visão, com maior o menos conotação clubística sobre o tema.
A juntar a todo este “caldo” nacional, podemos importar casos similares de outros campeonatos. Itália ou Alemanha podem servir de inspiração.
E aí, observamos que o Génova integra a lista dos campeões italianos (1898) quando somente fez dois jogos (apuramento por eliminatórias envolvendo somente quatro equipas) e o Nuremberga é decretado como nove vezes campeão alemão, embora aqui haja duas contabilidades, antes e após criação da Bundesliga em 1963, sendo que o FC Nuremberga teve os seus anos de ouro na primeira metade do século XX, anos durante os quais sagrou-se sete vezes campeão (com nove títulos, é considerado o segundo maior clube alemão, atrás do Bayer de Munique). Para além do Nuremberga, todos os campeões alemães antes da criação da Bundesliga figuram na lista dos vencedores, fazendo com que a história dos clubes permaneça viva.
Apagar a história ou rescrevê-la. Tem a palavra a FPF.
Olhando para os factos expostos, é difícil entender que só se contabilize um campeonato (da Liga) que que tinha um objetivo experimental e não se contabiliza, ou antes, se apague da história do futebol português um campeonato (de Portugal) que durou 17 anos.
E nos anos em que as duas competições decorreram em simultâneo, em períodos diferentes, a Liga de janeiro a maio, e o campeonato de maio até julho – há uma pergunta que merece resposta clara: se uma serve para apurar um “campeão de inverno”, para que serve a competição seguinte?
O que leva a outra questão. E que fazer ao somatório das conquistas de Sporting (4), Benfica (3), Belenenses (3), Porto (4), Marítimo (1), Olhanense (1) e Carcavelinhos (1). Não servem para nada? Nem para equipará-los, ou antes, juntá-los aos vencedores da Taça de Portugal. Brincou-se ao futebol durante 17 anos? São títulos híbridos, não contabilizáveis, não são merecedores de um título? Uma página sem nome no futebol?
Porque se não forem denominados de campeão nacional têm obrigatoriamente de, pelo menos, serem inscritos no currículo da Taça de Portugal. Até porque a Taça, troféu exatamente igual ao erguido pelos vencedores do Campeonato de Portugal tem a inscrição de todos os vencedores desde 1922 e não a partir de 1939, ano em que a Académica de Coimbra ergueu o primeiro troféu.
Defendendo que a história não pode ser reescrita ao sabor do vento e das vontades ou das cores das canetas, tão pouco pode ser apagada. A bem da própria história do futebol português é bom que se ponha um ponto final na questão.
Pessoalmente, gostava que, em 2018, o Carcavelinhos entrasse para a história do futebol nacional. Ou, em última instância que o troféu que ergueu servisse para algo. Para que se torne campeão quando já não existe ou para entrar na história da Taça de Portugal, fosse ela, ou não, na altura o troféu mais importante, sendo que, objetivamente foi secundarizada, a partir de 1939.
O mesmo se aplica a Marítimo e Olhanense e a Porto, Sporting, Belenenses e Benfica.
Merecem os clubes, os atletas, os adeptos e os dirigentes. E merece a história e a estatística do futebol nacional. E já agora a própria Taça de Portugal que todos os anos é erguida no Jamor com a “chapinha” com todos os vencedores...desde 1922.
Caberá à Federação Portuguesa de Futebol decidir. E sobre a decisão em relação ao Carcavelinhos é bom ter presente que qualquer que seja levará sempre o Atlético Clube de Portugal a reclamar esse(s) título(s), assumindo-se o emblema de Alcântara como herdeiro de todo o património do extinto clube. Mas aí, outra novela poderá nascer.
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