Não tenho um escritório há anos, vou trabalhando onde calha. Ontem, uma senhora no café da minha aldeia olhou-me com perplexidade. Perguntou ela: "Então, não tem emprego? Quer dizer, eu sei que escreve livros, mas isso não é bem um trabalho".

Eu estava com pressa e, portanto, poupei a criatura a grandes explicações, mas fiquei com aquela frase a martelar na minha cabeça.

..."eu sei que escreve livros, mas isso não é bem um trabalho"

Escrever é um trabalho. É um trabalho sem rotina, mas com muitas exigências. Podemos escrever das tantas às tantas, é certo, e podemos estar dias sem escrever uma linha. Apesar dessa putativa inércia, estar parado não significa deixar de trabalhar.

A história escreve-se dentro de nós. Mas sim, a senhora do café tem razão num único aspecto: escrever livros não nos dá um ordenado. Tão-pouco a ideia de estabilidade e segurança. É uma profissão em que se está no arame. Sempre a ver o abismo, sempre a pensar que este livro é que vai ser, finalmente as vendas serão grandes, logo, os direitos de autor também. Não acontece muitas vezes e, acima de tudo, não acontece com valores financeiros que permitam fazer a vidinha de todos os dias.

...Escrever é um trabalho. É um trabalho sem rotina, mas com muitas exigências

Eu escrevo livros. E escrevo crónicas. E edito duas revistas. E faço um podcast (atenção que a segunda temporada de Um Género de Conversa está quase, quase a chegar). Não é propriamente abraçar o nadismo, é apenas uma fórmula pouco usual de trabalhar, ganhar dinheiro, pagar impostos. E calhando, até trabalho mais horas que muitas pessoas com o tal horário regular.

Um profissional liberal, por conta própria, tem muitas exigências, demasiados obstáculos, impedimentos e, claro, muito cansaço acumulado. O que me desgostou foi o tom de desprezo da senhora do café. Ou o cansaço que me fica, de tantas vezes me perguntarem quando terei eu um novo livro. Parece que ando a mandriar.

...escrever livros não nos dá um ordenado

Malta, ando a fazer outras coisas porque o dinheiro não estica, no universo ímpar da literatura, e as vendas são o que são. Se eu vendesse livros ao ritmo a que tenho pedidos de adesão às minhas redes sociais, esses amigos virtuais do like, estava muito bem. Não é o caso. Porque as pessoas gostam muito de seguir os escritores, ou outra gente criativa; mas daí a sentirem curiosidade sobre o nosso trabalho, ao ponto de gastarem dinheiro, vai uma distância grande.

Enfim. Não tenho um emprego. Tenho vários. Infelizmente, não sou a única. E não, não tenho nenhum livro na calha.