A vitória de Boris Johnson já era esperada, tanto por uns como por outros, mas ultrapassou todas as expectativas: uma maioria absoluta de 365 lugares num parlamento de 650, a maior desde Margaret Thatcher em 1987. Todos os outros partidos juntos não chegam para o vencer numa votação no Parlamento. E os trabalhistas desceram para o seu pior resultado desde 1935.
Consuma-se assim uma viragem colossal na política britânica, cujas consequências se farão sentir por décadas. Há 10 anos que o Parlamento titubeava com maiorias muito fracas, do que resultou uma década de decisões hesitantes, degradação dos serviços públicos e desautorização do Governo. A partir de agora haverá, como nos tempos do Império, um Governo à vontade para tomar decisões pequenas e grandes, sendo que as grandes certamente mudarão a atmosfera das ilhas. O que não há é o Império, mas isso os ingleses vão ter de perceber à sua custa, na década que começa a 31 de Janeiro.
Esta eleição foi sobre o Brexit, única e exclusivamente. E nela pesou mais, não as opiniões a favor ou contra a saída da UE, mas o extremo cansaço dos ingleses com a situação indefinida e a ansiedade de entrar num novo período da vida nacional. Não vale a pena estar a repisar aqui as razões de leavers [os que desejam sair da UE] e remainers [os que são favoráveis à permanência na UE] , agora ultrapassadas pelo facto consumado. Mas convém lembrar que as opiniões e os ressentimentos não desapareceram, e haverá consequências imediatas.
Uma, é a situação da Escócia. O seu partido nacionalista, o SNP, ganhou 48 dos 55 assentos que os escoceses têm em Westminster. Isto significa que a Primeira-ministra Nicola Sturgeon exigirá um novo referendo para sair do Reino Unido. É certo que o ganharia, mas também é certo que Boris Johnson não dará a imprescindível aprovação de Londres. O que se segue não será uma independência hostil (que a Escócia não tem condições nem espírito para fazer), mas um arrastar de pés e extrema má vontade entre Londres e Edinbourough, com péssimas consequências económicas. A Escócia atrasará todas as decisões de Londres e Londres cortará verbas fundamentais de desenvolvimento à Escócia. É mau para a Escócia e é mau para a Inglaterra.
Outra, é a situação das irlandas. O DUP, o partido pró-britânico e protestante da Irlanda do Norte, já não é necessário a Johnson para ganhar votações. Aliás, Johnson já os tinha “atirado para debaixo do autocarro”, ao fazer um acordo com a UE que estabelece uma “fronteira no mar da Irlanda”. Portanto, os unionistas estão sozinhos, sem protecção de Londres, e os adormecidos rebeldes católicos republicanos sentir-se-ão mais à vontade para fazer aquilo que gostam, provocar uma guerra civil de baixa intensidade no Ulster. É mau para a Irlanda do Norte, para a do Sul, e para a Inglaterra.
O jornalista Simon Jenkins, no “The Guardian” definiu muito bem as duas opões sociais – uma vez que a falta de clareza de Corbyn não dava duas opções quanto ao Brexit. Escreveu ele: “O programa de Johnson é rotineiro e mal pode ser considerado Conservador. Tem vagos toques de Blair, em contraste com o esforço retro, 1970, de Corbyn. Não fala dos conceitos tradicionais dos conservadores como a contenção fiscal, a crença num mercado livre, na empresa privada e na auto-confiança. Os seus alvos são os velhos trabalhistas apoiantes do Brexit, como indica uma sondagem que dá 45% dos eleitores da classe trabalhadora como votantes conservadores, enquanto só 13% dizem votar Trabalhista. (...) O seu programa não resistiu ao habitual esbanjamento com melhorias que incluem 20 mil polícias, milhões para subsidiar proprietários jovens, centros de dia e escolas. Não conseguiu resistir aos soundbites de propostas menores que dão manchetes, como tapar buracos nas estradas, estacionamento gratuito nos hospitais, restaurar troços abandonados de caminho-de-ferro, acabar com a produção de petróleo por injecção no subsolo (“fracking”) e proteger as tabernas das aldeias. Numa democracia normal estes assuntos são da tutela dos municípios, contudo ele não irá dar apoio às autarquias; todo o dinheiro disponível vai ser mandado por Whitehall, para que Johnson possa tirar benefício político. O centralismo é a essência do populismo.”
Por outro lado, a vacilação de Corbyn custou-lhe a eleição e a direcção do partido. Só pode queixar-se da sua incompetência, falta de clareza, e propostas económicas assustadoras. A Grã-Bretanha não está interessada em entrar num modelo de estado socialista de antes da II Guerra Mundial. A fraqueza de Corbyn ficou muito bem ilustrada numa pergunta do jornalista Andrew Neil, numa entrevista na BBC: “Porque haviam os ingleses de querer um Primeiro-ministro que não tem uma opinião declarada sobre a questão mais importante que se coloca à Inglaterra nos últimos setenta anos?”
Um dos grandes partidos muito forte e o outro muito fraco não é bom para a democracia, nem para o nível de vida dos ingleses. Johnson tenderá a decisões neo-liberais que, numa economia assustada e em recessão, levarão a desemprego e agitação social.
Finalmente, coloca-se a questão da relação com a União Europeia, o maior fornecedor e cliente do Reino Unido. A 31 de Janeiro, o país poderá simplesmente sair da União, passando a reger-se a relação entre os dois pelas normas da Organização Mundial de Comércio, com fronteiras, alfândegas, diferenças nas normas de segurança e saúde para os produtos, etc. etc. O fluir transparente de produtos e serviços num mercado sem barreiras termina. A seguir, começam as negociações para novos acordos entre a ilha e o continente. Até hoje, nenhum acordo deste tipo se conseguiu realizar em menos de 11 meses – e 11 meses foi o recorde absoluto do acordo entre a Austrália e os Estados Unidos, que toda a gente considera incompleto e muito aquém do necessário.
Há um acordo provisório, que basicamente mantém o actual estatuto de relações comerciais, que termina em 31 de Dezembro de 2020. É um prazo muito curto para decidir tudo o que há a decidir. E não se sabe como decorrerão as negociações. A UE pode usar a sua vantagem negocial – precisa muito menos do acordo do que o Reino Unido – para fazer uma proposta sem margem para mudanças. Ou então para atrasar as negociações ad infinitum, punindo assim o rebelde que desconsiderou o seu formidável esforço de integração ao longo dos anos.
É preciso lembrar que a UE, embora nunca fosse favorável ao Brexit, até agora venceu todas as etapas: definir uma fronteira na Irlanda, proteger os interesses dos cidadãos europeus e usar o drama do Brexit como deterrente para outros países que pensem em fazer o mesmo.
Johnson tem prometido que a nova Albion livre e independente fará acordos comerciais muito favoráveis com o resto do mundo, nomeadamente os países da Commonwealth e os Estados Unidos. Mas a relação de exploração imperial entre a Grã-Bretanha e as suas ex-colónias acabou há muito tempo. Esses países, sejam a Austrália ou a Índia, não têm grande interesse em dar facilidades bilaterais aos antigos senhores. Fazem parte de outras alianças, têm produção própria, já não existe a superioridade tecnológica britânica. Quanto aos Estados Unidos, Trump deixou claro que só negociará se for para ganhar. Tem muito mais a impingir à Inglaterra (fala-se da privatização do Serviço Nacional de Saúde para seguradoras norte-americanas, por exemplo) do que benefícios a receber dela. A situação pode tornar-se colonial ao inverso, dentro do contexto das novas tecnologias e necessidades de consumo.
A saída do Reino Unido da União Europeia é um rude golpe no sonho europeu de Schuman, Monnet e dos outros idealistas que viram as vantagens dum continente unido: paz entre as nações, riqueza de um mercado de 500 milhões de habitantes. Não morreu a ideia, mas os amanhãs cantam mais baixo.
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