Thales de Menezes não gerou propriamente um incidente diplomático. É pena. Fazem-nos falta incidentes diplomáticos, a oportunidade de exercermos defesas de honra até contra ofensas desleixadas. É pena. Amuamos nos embates partidários internos, mas não vejo uma boa crispação virada para fora há muito tempo. É pena. Existe uma bonacheirice qualquer a hipnotizar-nos no nosso território, e que fora de portas se transforma em vénia servil. É isto a diplomacia? É isto: fazermos capachos das nossas costas, em vez de pontes nas nossas palavras? Posso estar enganado, mas crispado é que queria mesmo estar. Sem pena.

Thales de Menezes pode bem ser um cafajeste – o grau de injustiça neste insulto que acabei de escrever é nulo. Não há injustiça porque, primeiro, assumo que é insulto, não uma análise nem uma suposição. Assumo que é insulto, logo posso infundamentar-me como bem entender. Segundo, porque verdadeiramente injusto seria isto: ler Thales de Menezes e, em vez de dizer que ele é um cafajeste, eu escrever que toda a imprensa brasileira é salafrária. Terceiro, porque Thales de Menezes fez exactamente as injustiças de que acabei de me inocentar: teceu insultos mascarados de comentário, e partiu da amostra isolada para sugerir uma generalização infame sobre a cultura dum país.

Thales de Menezes pode até mesmo ser babaca (estou a oferecer-lhe um dia em cheio no caso de se auto-googlar). Transformou o meu habitual artigo de opinião numa crónica de imprecação, e tudo pela forma como reportou o concerto dos portugueses HMB, Carlão e Virgul no Rock in Rio brasileiro. Depois de ler o que Thales escreveu na Folha de S. Paulo não consigo conter os raios e os coriscos. Podem acusar a minha reacção de corporativismo, ou de apenas querer defender os visados pelo artigo porque tenho lá amigos; são acusações honestas, e das quais nem sei se consigo defender-me. Mas e Thales? Qual é a desculpa dele para escrever como escreveu?

 Thales de Menezes (BASTA PUM BASTA!), foi testemunha ocular e auricular dos concertos portugueses que tanto depreciou, o que o coloca numa posição de vantagem face a mim, que nada ouvi. Mas é uma vantagem que, no fundo, pouco interessa: não tenho de saber como se portaram os meus amigos no palco para saber que, na imprensa, Thales se portou mal. Para um artigo tão curto, é demasiado fácil apontar vários erros. Deixarei alguns exemplos.

Thales de Menezes escreve que “O grupo HMB e os rappers Virgul e Carlão estão acostumados a dividir shows na tímida cena portuguesa do gênero” – ora, bastava ao jornalista ter feito essa coisa inaudita chamada “jornalismo” para evitar tamanho despautério. Se é possível enquadrar estes artistas num género musical comum, então esse será provavelmente o género menos tímido de todos a vigorar em Portugal; não há coisa mais fervilhante no nosso país do que o Hip-Hop ou música de “matriz negra”. Escreve depois “O som parece quase sempre datado, simulando o funk festivo dos anos 1980”, com a absurdidade de não distinguir um revivalismo intencional dum desleixe obsoleto. Queixa-se, no final, da ingenuidade das mensagens, da cabriolice e romantismo notórios ou da pouca substância contestatária; ora, essa poderia ser uma crítica justíssima se o bom Thales estivesse a cobrir o Newport Folk Festival de 1965, não o super-mainstream Rock In Rio, onde os nomes com letras mais gordas nos cartazes são, por norma, os detentores dos refrões mais fúteis.

Thales de Menezes é, no jornalismo musical, a antítese do nosso Rui Miguel Abreu, porque o nosso Rui Miguel Abreu sabe do que fala. Enquanto eu escrevia esta crónica, deparei-me com as intervenções do Rui sobre a polémica (tanto na Blitz como na Rimas e Batidas) e quase fiquei aborrecido por ele já ter focado todos os pontos onde eu ainda queria debruçar-me. Para não roubar nem passar-lhe por cima, vou deixar a opinião do Rui Miguel no meu espaço de sugestões. Ainda assim, há um assunto tocado por ele que, por me ser caro, não evito sublinhar: o nosso conhecimento profundo da música brasileira e o desconhecimento generalizado que os brasileiros têm da nossa música. Não aponto nisto nenhum dedo condenatório ao Brasil, bem pelo contrário: a produção musical deles é tão diversificada e rica que têm todo o direito àquela supremacia que ignora os demais. O que quero apontar, sim, é que a verdadeira supremacia cultural duma ideia lusófona (tal como existe a anglo-saxónica), nunca será possível sem a contribuição portuguesa; tenho a certeza. Convém a Portugal uma inversão alves-cabraliana (sermos descobertos pelo Brasil) mas os benefícios disso não ficavam só para nós. A aliança musical das diversas maneiras de falar português poderia, sem sombra de dúvida, ser o passo mais gigante dos países lusófonos rumo a qualquer coisa melhor, não necessariamente musical. Países irmãos, com Thales e tudo.

Sítios certos, lugares certos e o resto

Rui Miguel na Blitz;

Rui Miguel na Rimas e Batidas;

Ainda na música. Sem Rui mas com Ringo.