Na lírica portuguesa, os significantes “garagem” e “vizinha” revestem-se de uma aceção erótica, concedida em parte pelo trabalho poético de Joaquim Barreiros, trovador ultrarromântico de Vila Praia de Âncora. No caso dos lugares de estacionamento facilitados pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) à cantora Madonna nas Janelas Verdes, talvez não haja a consecução de facto do coito extraconjugal no anexo adjacente, mas há sem dúvida uma boa dose de promiscuidade.

Nas zonas históricas, há cada vez mais lugares dedicados à viaturas de animação turística que deglutem estacionamento para residentes. A EMEL entrou, com pouca eficácia, por bairros onde a oferta de estacionamento é tão miserável que chega a ser insultuoso este ser pago. Mesmo para quem tenha dinheiro para tal, conseguir um lugar de garagem a pagar uma avença (por valores muitas vezes superiores ao do contrato com a Rainha da Pop) muitas vezes só é possível após meses em lista de espera. Para além disso, Lisboa é ainda uma cidade onde tudo acontece ao ritmo dos século XIX, muito por causa da escassez lugares para cargas e descargas.

Estacionar em Lisboa, mesmo para moradores, não é facilitado, nem barato, muito menos grátis. Para obter o dístico de residente, para a primeira viatura, paga-se 12 euros por ano à EMEL. Para a segunda viatura, 30 euros. Para a terceira, 120 euros. Tendo isto em conta, parece que o ponto é querer, e bem, dificultar a vida a quem queira estacionar uma frota no centro da cidade, ou não?

Por defeito, não está previsto o valor para uma quarta viatura (confesso que não sei sequer se é possível). Ainda assim, fiz as contas e a verdade é que, mantendo a proporção – e atenção que eu não tenho Matemática desde o nono ano -, o quarto carro deveria custar-lhe 300 euros / ano, o quinto 1200, o sexto 3000, o sétimo 12 000, o oitavo 30 000, o nono 120 000, o décimo 300 000, o décimo primeiro 1 200 000, o décimo segundo 3 000 000, o décimo terceiro 12 000 000, o décimo quarto 30 000 000 e o décimo quinto 120 milhões de euros por ano. O que é 119 999 280 euros a mais do que a renda que Madonna Louise vai pagar à CML.

Madonna faz publicidade a Lisboa, tudo certo, mas será que Lisboa tem uma autoestima tão fraca que necessita de discriminar positivamente uma das suas moradoras mais abastadas, quando simultaneamente oprime os condutores que só precisam de quatro metros e meio para enfiar a carrinha da família? Ser parolo é como estacionar mal em paralelo – somos capazes de o evitar se não tivermos medo de olhar para o espelho.

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