1. Aterrei no Rio de Janeiro entre as duas audiências públicas do Supremo Tribunal Federal (3 e 6 de Agosto) sobre a despenalização do aborto no Brasil. Neste momento, uma brasileira que aborte pode ser presa por três anos. Uma das campanhas em curso contra isto diz que se os homens também pudessem ser presos o aborto não seria crime ainda. Pois é. Mas desde a idade das cavernas que a mulher engravida totalmente sozinha, ou do Espírito Santo, como se sabe. E na idade das cavernas continuamos, em muitas frentes. A única brasileira que aborta e não corre mesmo o risco de ser presa é aquela que morre disso, o que no Brasil acontece a quatro mulheres por dia. Isto significa que, quando estiver a ler esta crónica, uma brasileira terá morrido na sequência de um aborto pouco antes, e irá morrer a seguir. E significa, de facto, que a vida de uma mulher no Brasil não vale mais do que uma célula ou um embrião. Na lógica dos crentes que teimam que esse embrião já é vida, são duas vidas diante do Criador, mulher e embrião. Então, morte por morte, morre a mulher, pois quem a mandou abortar? E, antes disso, engravidar — sozinha, ou do Espírito Santo.

2. Eis onde estamos em 2018, no Brasil, como na Argentina. Na quarta-feira, o Senado em Buenos Aires chumbou por 38-31 a legalização do aborto até à 14ª semana de gravidez. Num interminável dia de Inverno, com a Argentina dividida entre azuis — contra — e verdes — a favor —, os senadores argentinos contrariaram o voto dos deputados que em Junho tinham aprovado a legalização. As argentinas continuarão, assim, a poder ser presas por quatro anos se abortarem. E até ao fim deste ano parlamentar não será possível voltar à luta legislativa.
Nessa mesma noite, as cariocas saíram à rua, diante da Assembleia do Rio de Janeiro, pelo aborto legal, seguro e gratuito na América Latina. Porque a luta delas é a mesma que a das argentinas, e não apenas. É a minha luta, e a de todas as mulheres e todos os homens que queiram uma democracia plena. Aborto não é só questão de saúde pública, é questão de saúde política. Não é possível conceber uma democracia plena em que as mulheres valham menos do que um embrião. Em que as mulheres continuem a valer menos. Em que os homens continuem a legislar em esmagadora maioria, olimpicamente, hipocritamente, como se as filhas, mulheres, sobrinhas, afilhadas, amigas não pagassem bem para abortar com segurança. Em Junho, quando os deputados argentinos aprovaram a legalização, pareceu-me ver sobretudo mulheres naquela emocionante maré verde. Eram as hermanas que dominavam a rua. Agora, esta quarta, depois do chumbo do Senado, pareceu-me ver mais homens de verde a fugir da carga policial. Tudo isto à distância eventualmente enganadora do vídeo. Mas o que parece certo é que serão precisos muitos mais homens nesta luta. É preciso que os homens tirem a cabeça da areia.

3. Algo mudará mais quando muitos deles forem capazes de partilhar uma campanha como #YoAborte, #EuAbortei. Porque, sim, na esmagadora maioria das vezes em que uma mulher aborta, um homem aborta também, embora nunca possa viver no corpo aquilo por que passa uma mulher. Mas justamente por isso, quer já tenha sido parceiro de um aborto ou não, por nunca conhecer em toda a extensão o que significa fazer um aborto, é que será importante cada vez mais homens partilharem isto.
Fazer campanha com as hashtags #YoAborte, #EuAbortei não é glorificar o aborto, como já ouvi comentar em redes sociais, mesmo da parte de quem diz defender a descriminalização do aborto. Confundir essas hashtags com glorificação do aborto é uma ofensa para qualquer mulher que já tenha passado por um aborto. Todas as mulheres que fizeram um aborto sabem que é impossível haver uma glorificação do aborto. Ele pode ser vivido mais ou menos dramaticamente, mas nunca com satisfação — para não dizer em glória: só esse pensamento é de uma violência sem noção.
Dizer Eu Abortei é fazer o que fizeram as mães e avós desta luta, que vestiram t-shirts para estar no parlamento. É dizer, leia na minha camisa: esta luta é de todos nós. Dizer que o aborto é transversal, o aborto envolve todo o tipo de mulheres e de homens, crentes e não crentes, pobres e ricos. A diferença, claro, é que os ricos, as ricas tendem a não morrer, porque podem pagar abortos mais seguros. Dizer Eu Abortei é dar força a quem abortou, dar força a quem se julga sozinha, dar força a quem teme sermos poucas e poucos. É dizer que pode acontecer a qualquer uma, qualquer um, e que estamos aqui para que nenhuma de nós morra disso, vá presa por isso, sofra mais — mais ainda — por isso. Não somos poucas e poucos, somos imensos, desde a Idade das Cavernas. O que nos pode distinguir é já não estarmos na Idade das Cavernas. E o Estado já não estar na Idade das Cavernas de ainda punir quem já passou tanto. De assegurar que quem precisa de abortar o possa fazer legalmente, em segurança e de graça.
E aos estafados receios de que a legalização “incentive” o aborto, olhem para as estatísticas, poupem-nos. Em Portugal, onde começámos por perder um referendo, e viemos a ganhar outro há pouco mais dez anos, os abortos diminuiram, e continuam a diminuir. Para quem se diz a favor da descriminalização, mas depois contesta este tipo de campanhas, eu faria uma sugestão: aponte ao inimigo.

4. Quando vim morar para o Brasil, em 2010, como correspondente, comecei por cobrir a eleição presidencial que reelegeu Dilma Rousseff. Foi o meu primeiro choque com a ginástica de parte da esquerda brasileira quanto ao aborto, e a escassez da luta feminista então. Ginástica de parte da esquerda porque de uma mulher que foi guerrilheira, e reclamava ser chamada Presidenta, eu esperaria um discurso mais corajoso quanto ao aborto. Mas não foi só um problema de Dilma, foi também de Lula. Em nome da governabilidade, de não alienar votos evangélicos ou mais conservadores, essa esquerda não foi corajosa, ou foi sinceramente conservadora, quanto ao aborto.
Lula, entretanto, disse que havia que tratar o aborto não de acordo com as suas convicções pessoais, mas como questão de saúde pública. Menos mau.
E o feminismo no Brasil deu saltos gigantescos desde então. Nestes oito anos, as mulheres ganharam voz e acção, desde as favelas à burguesia, com as mulheres do morro a arrastarem muitas vezes as do asfalto, e muitas vezes as mulheres a arrastarem homens, enfim homens que há poucos anos nem remotamente achariam que isto era assunto deles. Isto: do aborto ao assédio, passando por todas as formas de violência a que as mulheres brasileiras têm sido sujeitas, elas que foram o primeiro objecto da violência colonial. O fortalecimento combativo das mulheres foi das coisas mais emocionantes, mais encorajadoras de ver, e a cada vez que aqui piso me parece que os saltos estão cada vez mais fortes.

5. Bem precisamos porque nunca as mulheres com voz foram tão ameaçadas, vai fazer meio ano que Marielle Franco foi morta, este país vai para eleições daqui a menos de dois meses, e um dos candidatos mais fortes é um apologista da ditadura, da tortura, não só contra a despenalização do aborto, como defensor da esterilização dos pobres para combater “miséria” e “crime”: Bolsonaro.
E o problema não se fica por Bolsonaro. Chega a quem quer combater Bolsonaro. Por exemplo, Ciro Gomes, uma das alternativas ditas à esquerda. Que diz Ciro Gomes sobre o aborto? Do que eu entendo, diz “nim”. Diz que é uma tragédia a que o Estado não pode pesar mais. Ok. Vamos tirar daqui que Ciro até vá pela despenalização. O facto é que a sua vice, a ruralista Kátia Abreu, acaba de defender mais facilidades para o porte de arma, e mais criminalização do aborto. Num dos casos em que a lei brasileira, hoje, permite a excepção — anencefalia do feto —, Kátia Abreu é contra. Ciro veio dizer que não concordava com a sua vice, e que vice não tem de pensar o mesmo que o candidato, e sempre foi assim no Brasil. Bem, Temer, que foi vice de Dilma, não é lá grande exemplo. O que vejo aqui é mais um contorcionismo. Não percebo o que a esquerda faz com isto.
Depois há Marina Silva, evangélica. Contra prender a mulher e admitindo um plebiscito, mas contra o aborto pessoalmente.
Mas um dos dramas desta eleição é mesmo a divisão em tantos do contrapeso de Bolsonaro.

6. O Brasil é um país laico onde é difícil achar ateus. As duas coisas não são nem podem ser incompatíveis. O Brasil tem de continuar a ser um país laico, sendo que é difícil achar ateus aqui. Leio que nas sondagens 57 por cento é contra a despenalização do aborto. Não é um bom número, mas é um número com que se pode trabalhar, leia-se lutar. E há outro número interessante. A percentagem de quem defende a legalização aumentou de 23 por cento para 36.
Só a luta, a pressão popular, cívica levará à legalização. Uma luta contínua, capaz de superar perdas e fracassos, cada vez mais ampla, com mulheres e homens.

7. Os cristãos terão nisso um papel importante. E por isso vale a pena terminar com uma nota relacionada com o Papa Francisco. Ele que é argentino, ele que soube falar ao coração de milhões de brasileiros em 2013, ele que tem sabido falar para fora da Igreja Católica, a outros cristãos, e tantos não-crentes, poderia ter um papel decisivo na questão do aborto. Porta que já entreabriu.
Das audiências públicas do Supremo Tribunal Federal sobre a despenalização do aborto destaco a contribuição de uma católica, professora da PUC (universidade católica), presidente do movimento Católicas pelo Direito de Decidir, Maria José Rosado:
“As mulheres católicas recorrem ao aborto, em grande número, indicando mesmo as pesquisas que são a maioria das mulheres que abortam. E sua fé religiosa conta no momento de sua decisão. E conta também, o peso da ilegalidade e a possibilidade de serem maltratadas e mesmo presas. É tendo essas mulheres em meu horizonte que trago o Papa Francisco nesta intervenção. Fui religiosa católica — freira — durante muitos anos. Morei no interior do estado do Acre e na Bahia, na região da seca. E aí tive a oportunidade de conhecer e conviver com a Teresa, com a Ni… mulheres pobres, prostitutas, com muitas outras mulheres para quem a religião era, de fato, o único consolo. E é essa a razão de eu trazer aqui, a forma do Papa Francisco tratar o aborto, as mudanças que ele introduz. Seria desonesto dizer que ele não o considera um pecado, diferentemente de nós, católicas feministas. No entanto, desde que, logo no início de seu Pontificado, em outro contexto, ele disse: ‘Quem sou eu para julgar?’ um redirecionamento estabeleceu-se (…). Por séculos a Igreja considerou-se a portadora única da verdade e da capacidade de julgar os atos humanos e mesmo a sociedade. O que o Papa fez, foi colocar-se em outro lugar, num outro horizonte: aquele do pastor que não julga; compreende, perdoa e oferece compaixão. Foi ainda o que reiterou, quando estendeu aos padres a possibilidade de oferecer perdão às mulheres católicas que tivessem abortado. Em lugar da excomunhão, o acolhimento. Não é de se admirar que a Igreja mude. Historicamente, ela sempre mudou quando percebeu que as sociedades mudavam. Foi assim em relação à escravidão e foi assim em relação aos direitos humanos. Recentemente, mais uma mudança: A condenação da pena de morte, por tanto tempo aprovada pela Igreja. Por que não poderia reconsiderar sua posição em relação ao aborto? A ilegalidade faz do aborto uma forma de pena de morte para as mulheres.”
E, pelo lado dos evangélicos, que tanto têm crescido no Brasil, termino com uma citação da pastora luterana e teóloga Lusmarina Campos Garcia, que também contribuiu para a udiências pública do Supremo Tribunal:
“Há séculos, um cristianismo patriarcalizado é o responsável por penalizar e legitimar a morte de mulheres. A criminalização religiosa das mulheres por causa do aborto necessita ser colocada neste contexto histórico. Esta audiência pública é um momento importante para um debate aberto e democrático, cuja pergunta de fundo é: porque uma parte das tradições religiosas, que são construções históricas, insiste em disseminar e reproduzir a misoginia, controlando os corpos das mulheres e penalizando-as psiquicamente, por causa do suposto pecado e da culpa, e também criminalmente. As inquisições contra as mulheres continuam, mesmo travestidas por outras faces e formas. Outrora, foram as fogueiras reais, hoje, as fogueiras simbólicas, mas não menos perversas, que persistem através de um poder religioso, que age contra a dignidade das mulheres, via poder político, e se mantém institucionalmente.
A segunda tese que gostaria de propor é sobre como a laicidade do Estado é fundamental para a garantia do direito à igualdade em todos os seus aspectos, e, de maneira especial, à igualdade de género e liberdade religiosa e de consciência, inclusive no que diz respeito à possibilidade de decidir como, quando e se levar adiante uma gestação ou não.
Por fim, não menos importante, gostaria de oferecer meu acolhimento a todas as mulheres que já fizeram aborto e se sentiram sós. Gostaria de dizer a cada uma delas: vocês não estão sozinhas, e vocês não são criminosas. O aborto é uma questão de saúde pública, e questões de saúde pública não devem ser resolvidas através do direito penal nem da Bíblia, sobretudo por uma interpretação enviesada por interesses masculinos.”