A definição de “Europa” aparece pela primeira vez em 1732, num tal “Dictionnaire de Trévoux”: “A Europa é a mais pequena das quatro partes do mundo, mas tem sobre as outras muitas vantagens. A principal é a verdadeira religião, que ela melhor conservou e expande, principalmente a partir dos dois últimos séculos, para as outras partes do universo. A capital da Europa é Roma”. Esta definição, ao mesmo tempo ingénua e arrogante, diz muito sobre o que a nossa parte da Terra tem sido ao longo do tempo. (Devo a descoberta desta citação ao Major-General Filipe Arnaut Moreira, um especialista em geoestratégia.)

Mas então, a Europa como entidade é uma ideia muito recente. Geograficamente é a ponta oeste dum imenso continente chamado Eurásia (Putin gosta desta definição…); fez parte, durante séculos, do Império Romano, que se estendia à volta do Mediterrâneo e, portanto, era uma entidade que incluía o norte de África e não tinha nome próprio. Daí que apareça na definição com a capital em Roma, que era onde estava o Papa, o chefe da “verdadeira religião”.

Adiantando a História, as nações europeias formaram-se gradualmente desde o fim do Império Romano até ao século XIX, tendo como característica permanente competirem ferozmente entre si. As línguas eram diferentes, os costumes incompatíveis e as fronteiras mudavam amiúde, conforme a sorte das guerras que não paravam — a Guerra dos 100 Anos, a Guerra dos Trinta Anos, as conquistas de Napoleão e a expansão do III Reich, para citar apenas algumas.

Por razões várias, alguns destes países desenvolveram-se tecnologicamente mais rapidamente que as outras partes do mundo, pelo que, a partir do século XIV, começaram a navegar por todos os oceanos e a explorar e colonizar todas as terras que encontravam.

É de destacar que quando se diz que “a Europa descobriu o Mundo” cometem-se dois erros: o Mundo já lá estava, foi encontrado e não descoberto; contudo, o mais importante é que essa conquista não se fez solidariamente mas, pelo contrário, numa competição violenta entre os países europeus. Eram inimigos uns dos outros, aliando-se quando lhes dava jeito e rivalizando ao sabor dos interesses das dinastias reinantes - os Habsburgos, os Bourbons, os Trastâmara, os Tudor, e outros menos afirmativos.

Além dos reinos (aquilo a que hoje chamamos países, ou estados, ou nações), havia os ducados e grãos-ducados, os estados-eleitores, as cidades-estado, as repúblicas e outras formas de poder regional. A Alemanha e a Itália, dois dos grandes países de hoje, só passaram a existir em 1871 (quando Bismark derrotou Napoleão III) e 1861 (quando Garibaldi acabou com os Estados Papais.) O Império Russo, que começou modestamente em Kiev (desta definição, o Putin também gosta…), uma cidade fundada pelos vikings, é uma invenção de Pedro I, em 1721.

A linha divisória entre a Ásia/Rússia e a Europa tem mudado ao longo dos séculos. Discute-se muito sobre isto, mas o que faz mais sentido é considerar que uma parte da Rússia, mais ou menos numa linha que vai de São Petesburgo a Krasnodar faz parte da Europa, e a outra parte pertence à Ásia. Historicamente, a Rússia, tal como a Turquia, desde 1923 têm uma relação de amor-ódio com a Europa; querem ser europeias, mas sentem-se sempre menorizadas pelos países europeus.

Todo este relambório serve para perceber um pouco melhor ao que chegamos.

Adiantando novamente a História, no final da última guerra, em que os europeus se massacraram resolutamente, envolvendo o mundo inteiro na refrega - isto é, em 1945 - toda a gente jurou que não se meteria em mais nenhuma guerra - isto chama-se “wishful thinking”… - e criou-se a ordem mundial que todos nós conhecemos e julgávamos que era para sempre.

Para resumir em poucas palavras o que toda a gente sabe, nasceram três entidades: o “Ocidente” (Europa, Estados Unidos e países alinhados com eles), o “Mundo Comunista” (URSS e países satélites na Europa, e depois China, Coreia do Norte e Cuba, e o “Terceiro Mundo” (os “subdesenvolvidos”, uma mistura de países grandes e pequenos que não contavam grande coisa para a “Ordem Mundial”). Esse Terceiro Mundo tem pelo menos dois países, a Índia e o Brasil, que queriam muito ser desenvolvidos como o Ocidente, mas ainda não chegaram lá. Têm feito várias tentativas de formar um bloco, a última das quais se chama “Sul Global”. Mas estou a desviar-me, voltemos à Europa.

Na chamada Guerra Fria que se seguiu à II Guerra Mundial, a Europa decidiu finalmente que não queria mais guerras internas nem conquistar mais nada e começou a reconstruir-se da devastação bélica, criando uma aversão a tudo o que é militar. A União Soviética era uma ameaça, mas graças a deus os Estados Unidos tomaram a responsabilidade de defender a Europa com a NATO, que conseguiu assim dedicar os seus orçamentos à construção de uma qualidade de vida paradisíaca, misturando os luxuosos modos de vida tradicionais com as vantagens do progresso tecnológico.

Ao tomar esta via, cometeu três erros estratégicos - e aqui estou a aproveitar um artigo do intelectual inglês liberal-conservador Timothy Garton Ash, uma vez que, não pensando como ele em geral, concordo que está certo nesta análise.

O primeiro erro foi não ter criado um exército europeu. Qualquer entidade política que queira proteger-se neste mundo selvagem tem de ter uma defesa sólida. Como habitualmente, foram os nacionalismos ainda existentes e a tradicional competição entre os países europeus que tornou impossível esta evidência. A primeira tentativa foi a criação de uma Comunidade Europeia de Defesa, em 1954, e falhou completamente. Todos os países mandar, a hierarquia de comando seria uma confusão ineficiente e ninguém queria gastar dinheiro com belicismos. Aos poucos, acabou o serviço militar obrigatório em todos os países. Apenas a Grã-Bretanha e a França mantêm um pequeno contingente profissional bem equipado. (A Suíça também, mas não faz parte da União Europeia).

Como escreve Ash, “a Europa depende da NATO para a sua defesa, e a NATO depende da credibilidade da garantia do Artigo 5 feita pelos Estados Unidos". A credibilidade é a palavra-chave para dissuasão, assim como a confiança é a palavra-chave no mercado financeiro. Especificamente, o Artigo 5 obriga um membro da NATO a “tomar a acção que considerar necessária, incluindo o uso da força, se um aliado for atacado.” E Conclui Ash, ironicamente: “Como ficará a Europa se o Presidente Trump não achar necessário defender a Estónia?”

Nem precisamos de ir tão longe. Hoje, agora, 9 de Fevereiro de 2024, Trump nem sequer (ainda) é Presidente dos Estados Unidos e os trumpistas no Congresso acabam de matar um envio de mais ajuda à Ucrânia. Porquê? Por duas razões. Porque Trump quer  decidir o que vai fazer quanto à Ucrânia (obrigá-la a dobrar-se à Rússia, já o disse) e porque o Congresso dos Estados Unidos está na mão de Trump.

Os ultra-conservadores norte-americanos têm razão num ponto: porque é que os Estados Unidos hão-de pagar a segurança da Europa, se a Europa tem uma economia das mesmas dimensões?

O segundo erro foi desinvestir no armamento - tanto no fabrico, como na pesquisa de novos sistemas. A Europa, toda junta, não tem armas suficientes para mandar para a Ucrânia, e muito menos para se defender. Mais: os sistemas de armamento não estão uniformizados; segundo algumas contas, são 176 sistemas incompatíveis, enquanto os americanos têm 30 (estamos a falar de calibres, software, modelos de canhões e aviões, etc.) Ou seja, mesmo que a Europa convocasse, para se defender, milhares de milicianos que nunca viram uma espingarda , como é que coordenaria as dezenas de equipamentos diferentes, que esses soldados feitos à pressa teriam que usar?

Isto, para não falar da dissuasão nuclear. O Reino Unido tem algumas armas nucleares operacionais - quer dizer, a bomba e o foguete necessário para levar o explosivo ao seu destino. A França tem mais meia dúzia. Nenhum destes países tem testado a eficiência dos seus sistemas. A Federação Russa tem milhares de unidades operacionais, inclusive algumas hiper-sónicas, tão rápidas que não é possível impedi-las de chegar ao alvo.

Por acaso vi um programa de televisão russo, aqui há umas semanas, em que os especialistas, às gargalhadas, mostravam imagens virtuais em que os mísseis deles arrasavam Paris, Berlim ou Londres em menos de um minuto! Só mostraram as grandes capitais a ser obliteradas da face da Terra, mas tenho a certeza que há-de haver mísseis suficientes para incluir Lisboa…

Finalmente, o terceiro erro, de que Ash não fala - o terceiro erro dele é outro -, mas que é mais do que evidente: a Europa depende de inimigos ou pouco amigos para as suas necessidades de energia. Isso já ficou evidente quando Putin invadiu a Ucrânia e os alemães descobriram que compravam à Federação Russa 55% do gás natural e 34% do petróleo que usavam. Em geral, os países do norte da Europa dependiam dos russos. Os países do sul, como nós, dependemos da Nigéria, via Marrocos, e importamos 100% dos nossos gastos em petróleo e gás natural. Não podemos considerar estes três países como inimigos, mas acho que também é um pouco lírico considerá-los como fontes seguras, sobretudo em caso de crises - ou uma crise internacional, ou internas.

Bem, acho que não é preciso dizer mais nada. O que é - seria… - preciso, era fazer alguma coisa. Em Bruxelas fala-se muito nisso. Os europeus são muito prolixos a falar. Provavelmente vão chegar à palavra-chave da UE: consenso. Apenas se esqueceram que, no jogo da sobrevivência internacional, só há duas situações: agressor (potencial, que seja) ou vítima.

Em poder militar e em suficiência energética, um dos três grandes blocos do mundo é um zero.

Durmam descansados.