O que se passa nos países árabes é algo semelhante ao que se passou na Europa durante grande parte da nossa História: as línguas que falávamos em casa eram já formas muito alteradas duma língua comum, mais antiga. No entanto, essa língua comum (o latim) mantinha-se como língua oficial dos vários reinos e da Igreja.

Se quisermos imaginar uma situação semelhante no presente, podemos pensar num mundo em que a língua oficial dos vários países latinos continuasse a ser o latim, mas todos falássemos as várias línguas latinas na nossa vida pessoal.

Todos teríamos sido educados em latim, leríamos jornais em latim, escreveríamos em latim e, provavelmente, nem acharíamos estranho falar uma língua em casa e outra na escola.

Tal como os árabes, também nós comunicaríamos sem dificuldade com italianos, romenos, espanhóis e franceses — usando o latim... Entre portugueses, falaríamos o vernáculo português, em toda a sua variedade regional e social. Se nos perguntassem, diríamos que a nossa língua é o latim, ponto final.

Embora quase todos os escritores escrevessem em latim, um ou outro teria o atrevimento de escrever em vernáculo; haveria um ou outro programa de rádio na língua informal, mas os tribunais, as televisões, o governo — tudo isso seria em latim. Talvez um político ou outro usasse o português para bater mais fundo no coração do povo — mas, no parlamento, todos falariam em latim. Não seria uma situação muito diferente do que se passa nos países árabes.

Esta situação corresponde àquilo a que os linguistas chamam diglossia: duas línguas ou dois dialectos coexistem numa mesma sociedade, mas são usados em contextos sociais diferentes.

É o que acontece, entre outros casos espalhados pelo mundo, na Suíça de língua alemã, onde o alemão oficial é usado em muitas situações formais, mas todos falam entre si, fora dessas situações formais, em suíço-alemão (uma língua bastante diferente). A situação consegue ser complexa a este ponto: é possível que um professor universitário use o alemão quando está a dar uma aula, mas passe a usar o suíço-alemão quando está a conversar, no fim da aula, com um ou dois alunos.

Muitos dirão: então, mas o suíço-alemão não é um dialecto? Na realidade, chamarmos língua ou dialecto àquilo que se fala em casa não quer dizer muito: o que conta é haver uma forma oficial muito diferente daquilo que se fala em casa.

Na prática, todas as línguas sofrem um fenómeno parecido, em maior ou menor grau: o português formal (e o português escrito) não é igual ao português informal (bem mais variado e rico, para dizer a verdade). No Brasil, esta diferença é ainda mais marcada.

Voltando aos países árabes: o que temos é uma língua oficial comum, com uma longa literatura, transmitida pelo sistema de ensino e usada na escrita e uma série de variadíssimos dialectos ou línguas orais (chamemos-lhe o que quisermos).

A comunicação entre todos está garantida pela aprendizagem da língua oficial, mas as línguas em que as mães falam com os filhos já são outras.

Apesar disso, a população não considera a situação anormal: é tão natural como, para um português, usar palavras da sua terra quando vai visitar os avós. A designação de árabe abrange não só a língua clássica do Corão e o padrão oficial (o árabe moderno padrão, que já não é o árabe clássico), mas também os vários árabes coloquiais.

A resposta à pergunta «que língua fala?» será sempre «árabe», mas por trás temos esta estranha e intrigante situação.

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Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é História do Português desde o Big Bang.

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