4. They (víquingues a invadir línguas)
No primeiro capítulo, viajámos ao tempo do Rei Artur e dos anglo-saxões.
Vamos agora dar um novo salto no tempo até ali por volta do século IX.
Na mesma ilha, encontramos agora novos invasores: os víquingues.
Se olharmos com atenção para esses invasores escandinavos, vemos que nenhum deles usa chapéu com cornos. Temos de pôr os pontos nos ii, ou seja, tirar os cornos da cabeça dos víquingues. Ninguém usava cornos na cabeça! Foi uma invenção muito posterior.
Dito isto, podemos avançar para informações mais relevantes sobre a língua inglesa.
Na sempre animada Idade Média, os escandinavos andaram pelo mar a pilhar e a conquistar tudo o que encontravam. Chegaram à Grã-Bretanha. Aliás, chegaram ao que viria a ser Portugal. Até há quem diga que chegaram à América antes de Colombo.
Se, por outras paragens, chegavam, pilhavam e iam embora, na Grã-Bretanha acabaram por governar um território chamado Danelaw — e decidiram aprender a língua dos nativos (neste caso, “nativos” são os antigos anglo-saxões misturados com os celtas).
A língua dos víquingues era germânica, como o inglês, mas com muitas diferenças. Neste processo de aprendizagem em grupo, os víquingues acabaram por mudar a língua. Torceram-na até ela se submeter aos novos senhores, como bons invasores que são.
Algumas das palavras oferecidas pelos víquingues ao inglês são extraordinariamente importantes. Um exemplo é «they». Sim, «they» é uma palavra víquingue! O pronome em inglês antigo era «hīe»…
Também foi por esta altura que o inglês começou a perder o género gramatical nas palavras que representam seres inanimados.
Até então, tal como é comum nas outras línguas indo-europeias, o inglês também atribuía um género às mesas, às árvores, ao mar e à praia…
Ora, os víquingues tinham de decorar os géneros das palavras, que eram, muitas vezes, diferentes dos géneros na sua língua. Como já aprenderam a língua enquanto adultos, acabaram por aprendê-la de forma um pouco simplificada, esquecendo os géneros — tal como um inglês de hoje em dia, ao aprender português, também tem dificuldade em saber que género atribuir aos objectos.
Os invasores eram tantos e o seu domínio tão importante que esse inglês sem género acabou por se tornar no inglês falado por todos. Esta é, claro, uma das explicações. Estes processos linguísticos são muito mais complexos do que parecem…
É bem provável que este processo de aprendizagem da língua numa idade tardia por uma grande parte da população tenha ajudado a desbastar não só o género, mas também os casos e outra tralha gramatical da língua inglesa — a velha gramática começou a ruir, deixando uma língua um pouco mais simples (mas tão útil e expressiva como antes).
5. Mon Dieu! (1066 e tudo isso)
Enquanto a língua levava pancada dos escandinavos, os reinos dos anglo-saxões iam-se unindo.
Alfredo, o Grande — Ælfred, em inglês antigo —, rei de Wessex, fez um acordo com os víquingues e começou a governar todos os anglo-saxões. Podemos dizer que foi o primeiro rei de Inglaterra.
Pois bem, este rei falava inglês antigo, claro. Era a língua da corte — embora o latim ainda tivesse alguma importância, como acontecia na Europa toda.
O inglês, que já não era a língua duns quantos invasores vindos das selvas ali do Norte da Alemanha, era agora uma língua culta, com literatura, documentos, escribas — enquanto na rua, mudava sem freio na boca da população. Foi aprendida pelos celtas, foi aprendida pelos víquingues — e, assim, é bem provável que a língua falada fosse já bastante diferente da língua escrita.
Ora, em 1066 aconteceu qualquer coisa de muito importante. Os ingleses foram invadidos pelos normandos, que eram víquingues, mas já adaptados à França — e misturados com a população local.
Os normandos falavam que língua? Uma língua muito parecida com o francês, mas que também não era bem francês. Era francês normando.
Os anglo-saxões defenderam-se dos normandos, mas perderam. O rei de Inglaterra passou a ser um normando chamado Guilherme I (em inglês, William the Conqueror). A actual monarquia britânica começou a contar os nomes dos reis com esse tal Guilherme. Se o actual príncipe William chegar a rei e escolher esse nome para reinar, será Guilherme V, continuando a contagem iniciada por esse invasor francês.
A corte inglesa passou a falar francês normando. O resto da população lá continuou a falar inglês, pois não é por vir um francês armado em bom que os ingleses mudam de língua.
Ainda hoje subsistem vestígios do tempo em que o francês era a língua da corte. Por exemplo, o lema do monarca do Reino Unido é (repare na faixa por baixo do brasão):
Repare bem: «Dieu et mon droit». (Ainda ali pelo meio, o lema da Ordem da Jarreteira: «Honi soit qui mal y pense».)
O lema da rainha é em francês! «Deus e o meu direito» (de mandar nisto tudo).
Entretanto, os ingleses já não ligam tanto nem a Deus nem ao direito da rainha em mandar naquilo tudo. E também já não ligam muito ao francês — mas o lema lá continua…
Esta entrada do francês na Inglaterra enquanto língua de prestígio teve duas consequências curiosas.
Primeiro: o inglês começou a absorver palavras normandas como se não houvesse amanhã.
Segundo: a língua viu-se à vontade. Não havia uma corte que a usasse e determinasse, assim, qual era o uso de prestígio. Quando alguém escrevia inglês, já não seguia o padrão da corte (que andava metida no francês), o que levou a uma aproximação entre a língua da escrita e a língua da oralidade.
As velhas influências celtas, as mais recentes influências víquingues, as palavras normandas… Já ninguém tinha vergonha de as usar! O inglês libertou-se.
6. Pork (uma língua deliciosamente impura)
Chegámos ao inglês médio.
Ainda não é uma língua fácil de ler, mas é bem mais parecida com o inglês de hoje em dia do que o velho Old English.
Vejamos o início dos Contos de Cantuária de Chaucer:
Whan that Aprill with his shoures soote
The droghte of March hath perced to the roote,
And bathed every veyne in swich licour
Of which vertu engendred is the flour;
Whan Zephirus eek with his sweete breeth
Inspired hath in every holt and heeth
The tendre croppes, and the yonge sonne
Hath in the Ram his half cours yronne,
And smale foweles maken melodye,
That slepen al the nyght with open ye
(So priketh hem Nature in hir corages),
Thanne longen folk to goon on pilgrimages,
And palmeres for to seken straunge strondes,
To ferne halwes, kowthe in sondry londes;
And specially from every shires ende
Of Engelond to Caunterbury they wende,
The hooly blisful martir for to seke,
That hem hath holpen whan that they were seeke.
Não me vou pôr a traduzir tudo, mas repare no «Engelond» na terceira linha a contar do fim. Falamos da famosa «England». Repare ainda na expressão «smale foweles». Falamos de pequenas aves. E temos ainda o «sonne», que é o sol…
O leitor está a viajar pela imaginação. Pois garanto-lhe que, se ouvir alguém da época a ler este poema, estranhará ainda mais do que o aspecto das palavras na escrita.
A ortografia começou a fixar-se durante a época do inglês médio, quando a corte voltou a falar inglês e a imprensa veio dar um empurrão à fixação da maneira de representar os sons. Isto significa que a ortografia inglesa representa, em certa medida, a fonologia daquela época — e é por isso que hoje a consideramos tão caótica.
No fundo, a ortografia inglesa é uma ortografia pensada para a língua que se falava há muitos séculos. E também por isso a escrita da época nos é menos estranha do que a maneira de falar da altura.
Se olharmos para o texto, vemos muitas palavras com sabor latino. O inglês absorveu mesmo muitas palavras normandas. Algumas destas importações levaram à existência de pares de palavras com significado parecido (mas raramente igual) — uma delas anglo-saxónica, outra de origem latina.
«Pig», por exemplo, é o simpático porco. «Pork» é o simpático porco, mas morto — e pronto a ser comido. As quintas têm «pigs», mas à mesa comemos «pork». Interessante, não é?
O inglês tornou-se assim uma língua híbrida: tem muito vocabulário germânico, mas também muito vocabulário latino — e este vocabulário latino também foi enriquecido com importações directas das línguas clássicas (e por isso há também muitas palavras gregas) por altura do Renascimento.
Temos «freedom», que pode ser uma série de coisas, desde «freedom fighters», «freedom of speech», «freedom to do whatever one pleases», etc. — e temos «liberty», que fica muito bem no nome duma estátua ou de um sino.
Apesar desta história tão animada, a verdade é que, por estes tempos, o inglês ainda era uma língua obscura, escondida numa ilha no Mar do Norte, um idioma que nem sequer era usado pela corte. Mal imaginavam os seus falantes até onde chegaria. Será uma história para contar no próximo capítulo.
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é Português de A a Z.
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