1. O pior inimigo de Israel é Israel. Nem árabes, nem Irão, o fim vem de dentro. Israel está a conseguir o que os países à volta nunca conseguiram: destruir Israel. Um suicídio. Mas como o mundo permite que Israel tenha outro povo na mão, esse suicídio também é um homicídio. Resumindo, foi isto que se passou terça-feira, em mais uma vitória de Bibi Netanyahu.
2. Cobri as eleições de 2009 em Israel, quando Bibi se tornou primeiro-ministro. Dez anos depois Bibi é rei. Um caso único. Mais um, porque ser caso único é a especialidade de Israel. Bibi, O Vitorioso. Bibi, O Mágico. Bibi, O Leão. E rei reeleito, apesar dos processos de corrupção, apesar da ocupação. Para a maioria dos israelitas, corrupção e ocupação não existem. Aliás, não existem palestinianos. E também já não existe esquerda. Em 2019, ser de esquerda em Israel é um insulto.
Bibi tornou-se rei, e vai continuar a sê-lo legalmente, com a ajuda da extrema-direita, dos ultra-religiosos, das centenas de milhares de russófonos pós-URSS, e de Trump, claro. Rei de um guisado teocrático-populista-hipercapitalista, também ele único, que os fundadores de Israel não reconheceriam. Tal como o eleitorado de Bibi dificilmente reconhecerá Ben Gurion, uns por não saberem, outros por não quererem saber. Bibi é o perfeito Rei desta era sem passado, cheia de cegos e surdos aos gritos.
O estado de Israel foi proclamado por um trabalhista. A lenda comunal de Israel, país dos kibbutz, foi florir o deserto. Nem a lenda existe já, e nenhum árabe a deitou ao mar. Israel morreu de si mesmo.
3. Se forem à Wikipedia vão ler que o Partido Trabalhista é um dos grandes partidos de Israel. Está na história, desde Ben Gurion, pai fundador. Agora experimentem ver o que aconteceu ao Partido Trabalhista nesta eleição de 2019. É preciso fazer muito scroll para baixo, para baixo, passando o Likud de Bibi, depois o novo partido Azul e Branco do general Gantz que desafiou Bibi, depois os partidos religiosos, e então lá aparecem os Trabalhistas: seis deputados em 120 lugares. Tipo um táxi-carrinha. RIP. Nada que surpreenda quem há anos segue a política em Israel. Se a esquerda em Israel se tornou especialista no harakiri, os trabalhistas em especial. Os trabalhistas estão mortos há muito, e estes seis são o seu espectro. Uma espécie de ilusão pós-morte.
E se o Meretz, partido à esquerda dos Trabalhistas, ainda conseguiu ter quatro deputados foi porque recebeu votos dos eleitores “árabes”, ou seja, palestinianos com cidadania de Israel, cerca de um quinto da população. Não por causa dos israelitas judeus. Os israelitas judeus, únicos cidadãos com direitos totais, votam esmagadoramente no centro-direita, direita e extrema-direita, religiosa ou não.
4. Porque é que os Trabalhistas morreram? Porque se revelaram ocos. Não tinham nada para dar, zero oposição, zero visão, nem sobre o que fazer com os palestinianos em campos de refugiados desde 1948 — tabu desde então —, nem sobre o que fazer com a ocupação de 1967, a colonização selvagem que se seguiu, a prisão-holocausto em que se transformou a Faixa de Gaza — os tabus mais recentes. Na verdade, os trabalhistas contribuíram para tudo isto, por pensamentos, palavras, actos ou omissões. O suposto centro-esquerda em Israel é toda uma história do vazio. Bastava um piparote de Bibi para os varrer. Não havia nada lá dentro.
Não que eu tenha ilusões sobre a contradição de origem que Israel transporta desde Ben Gurion, desde 1948. Não que Ben Gurion, e a forma como Israel foi fundado, não fossem já a semente do que é Bibi, e o seu reinado. Israel gerou a sua própria morte.
5. O que resta de esquerda em Israel, e continua a lutar, são movimentos muito minoritários, incluindo objectores de consciência num país em que ser soldado faz parte da identidade nacional. Dessa trincheira, pequena mas dinâmica, fará parte, por exemplo, a revista online “+972”, que é o indicativo de Israel, e dos territórios palestinianos ocupados.
“Porque é que a esquerda sionista morreu esta semana?” pergunta, em título, um dos editores, Edo Konrad, na sua análise eleitoral. “Eles têm medo porque Netanyahu empurrou tanto o discurso para a direita que discutir a ocupação se tornou um tabu. Porque aqueles que querem falar das violações de direitos humanos na Cisjordânia ou em Gaza agora são considerados traidores. Porque é impensável falar da Nakba [como os palestinianos chamam à catástrofe de 1948, que para eles representou morte, fuga, exílio em massa] ou do destino dos refugiados palestinianos. Os trabalhistas ofereceram pouco: mais construção nos blocos de colonatos, pedidos para evacuar outposts [assentamentos não oficiais de colonos], e um referendo sobre os bairros palestinianos e os campos de refugiados na periferia de Jerusalém. Gabbay [o actual líder trabalhista] também declarou que não se sentaria numa coligação com os partidos árabes.”
De facto, com trabalhistas assim, a esquerda não precisa de mais opositores. Por isso, “muitos eleitores habituais dos Trabalhistas e do Meretz mudaram para Gantz, o ex-chefe de estado do exército que fez uma campanha sem qualquer proposta real a não ser derrubar Netanyahu”, diz Konrad.
“Estas eleições, e a diminuição do poder tanto dos Trabalhistas como do Meretz na política israelita, mostram que a estratégia da esquerda sionista, de ajustes superficiais em vez de mudanças radicais, se virou contra ela mesma. A incapacidade dos partidos sionistas de esquerda de lidarem não só com os seus falhanços mas com a ideologia que desalojou milhões de palestinianos, os transformou em refugiados, e expropriou as suas terras, significa que eles nunca vão transcender as suas contradições originais. Enquanto não decidir se tem mais medo de formar uma aliança real com os palestinianos ou com aqueles que querem desapossar os palestinianos, a esquerda sionista continuará a mirrar na sua própria irrelevância.”
6. Uma das promessas de campanha de Bibi foi anexar partes da Cisjordânia. Ou seja, tal como Israel fez com Jerusalém Leste — que à luz do direito internacional é território palestiniano ocupado —, transformar essas partes em território israelita mesmo. Apagar checkpoints, linhas de demarcação. Limpar da vista, e da memória, que aquilo foi capturado, colonizado. Assim se passeia um incauto por Jerusalém hoje, como se não houvesse uma fronteira, e fosse tudo Israel.
Bibi falou especificamente, para já, em anexar Maale Adumim, um colonato gigantesco de prédios nos arredores de Jerusalém. Quanto ao resto, disse: “Não desmantelarei um único colonato e vou assegurar que governaremos no território a ocidente do Rio Jordão.” A Cisjordânia.
Patético, se não fosse obsceno, que perante declarações destas os líderes internacionais continuem a falar em “solução Dois Estados”. Exactamente onde é que acham que o estado do Bibistão vai deixar que o estado da Palestina exista? Sério que gostava de ouvir essa resposta.
7. A revista “Economist” alarmou-se, depois de terça-feira. “A América tem de impedir Benjamim Netanyahu de anexar terra palestiniana”, titulou. E no texto alertava, sobre Bibi: “A sua poção — misturando nacionalismo musculado com chauvinismo judeu e anti-elitismo — ajudou a envenenar a política israelita. Ele proclama que é inocente, considerando as acusações [de corrupção] contra ele conspirações, e lançando descrédito sobre as instituições: a polícia, o judiciário e os media. Mas o sr. Netanyahu pode causar ainda danos mais duradouros. Nos dias finais da sua campanha prometeu anexar partes da Cisjordânia, algo que nenhum líder anterior julgou prudente. Isto contém o risco de matar qualquer hipótese de paz baseada na solução dois estados — que envolve a criação de um estado palestiniano — e, portanto, de transformar Israel numa nação impossível.”
Duas coisas espantosas. Primeira, que a “Economist” escreva como se acordasse para algo inesperado, algo que já não é um facto no terreno há muito. Segunda, que a “Economist” apele à “América” para impedir isto. Quer dizer, a Trump?
Trump foi o homem que reconheceu os Montes Golã durante esta campanha de Bibi, dando assim mais uma ajudinha ao Bibistão. Em plena campanha, Bibi foi à Casa Branca, e Trump assinou o reconhecimento. Os Golã são território sírio ocupado em 1967. “Bibi Trump e Donald Netanyahu”, escreveu o “New York Times”. Frankensteins deste tempo.
8. Li uma entrevista no jornal israelita “Haaretz” ao jovem “génio” da campanha de Bibi. Ele diz que aprendeu imenso com Bibi sobre marketing. Fizeram centenas de vídeos, dirigidos a diferentes bolsas do eleitorado. O jovem só se arrepende de uma coisa, não ter dado mais destaque à senhora Netanyahu, dada a popularidade dela.
Em 2017, no aniversário dos 50 anos da Guerra dos Seis Dias, que levou à ocupação, fiz uma série de reportagens em Israel, Jerusalém Leste, Gaza e Cisjordânia. Uma delas foi no colonato favorito do círculo Trump, Beit El. Favorito no sentido do apoio moral e financeiro. E lá, em Beit El, ouvi longamente um dos residentes veteranos, e entusiastas, o irmão da senhora Netanyahu. Estou mesmo a ver Trump a impedir Bibi de anexar terra palestiniana.
Comentários