Soube-se que desde segunda-feira o Presidente vitalício de Angola está de volta a Luanda, após um mês de misteriosa ausência. Como é normal em estados autocráticos, foi recebido pela nomenclatura da nação, que se apressou a ir beijar-lhe a mão: o vice-Presidente, Manuel Vicente, o presidente da Assembleia Nacional, Fernando da Piedade Dias dos Santos, e o juiz presidente do Tribunal Constitucional, Rui Ferreira, além de mais outros apparatchiks que não se podem permitir a não estar presentes numa altura destas.
Desde o princípio de Maio que circulavam em Luanda as mais desencontradas informações sobre o paradeiro e estado físico de Zédu, como é o conhecido o presidente. Informações não são notícias; a comunicação social de Angola permanecia estranhamente calada sobre a possível localização, doença e até morte, como chegou a ser avançado em alguns círculos, do homem que comanda os destinos dos angolanos desde 1979. Zédu não costuma sair do seu palácio das mil e uma noites e raramente aparece em público; no entanto um sistema informal de boca-a-boca e as ordens que emite ou manda emitir pelos seus próximos funcionam sempre como prova de vida. Ora, não foi o que aconteceu desta vez. Há uma mês que não se sabia dele.
Veja-se o cenário de fundo:
O país vai a eleições em Agosto. A vitória será indubitavelmente do MPLA, seja quem for o seu candidato; José Eduardo dos Santos disse que não se recandidataria, mas isso é o que ele tem dito em todas as eleições; há sempre a hipótese de que à última hora mude de ideias. No entanto, desta vez tudo indica que haverá mesmo um novo presidente, o que já é causa de inquietação entre os angolanos, desabituados que estão de mudanças.
Antes de desaparecer, o Presidente vitalício já tinha nomeado Manuel Vicente, o vice, para o substituir nas operações do dia-a-dia. Mau sinal.
Neste cenário, correu que Zedú saira do país. Teria ido tratar-se em Barcelona. Sabe-se que já esteve na capital catalã pelo menos um duas ocasiões, em 2013 e 2016. Para se tratar de uma doença que será cancro, embora as fontes oficiais e oficiosas nunca tenham reconhecido que o senhor de todos os angolanos tenha alguma doença, e muito menos uma doença fatal.
A 2 de Maio, o Jornal de Angola, órgão ultra-oficioso do Governo, confirmou que o Presidente estava em "visita privada" na cidade catalã. Privada porque não era oficial, não porque fosse por alguma razão de saúde. Talvez precisasse de mudar de ares, talvez fosse às compras – o Jornal de Angola, que não escreve uma vírgula que não possa ser escrita, nada esclarecia.
Questionado numa entrevista, Georges Chikoti, Ministro dos Negócios Estrangeiros, lá acabou por admitir que Zédu estava em Espanha por motivos de saúde, mas acrescentou: "Não, não estamos preocupados. Está tudo bem. Sabe que na vida isso acontece a todos nós, em algum momento não nos sentirmos bem o suficiente. Mas ele está bem. Por isso está em Espanha, mas quando se sentir melhor irá regressar”.
Pouco depois foi a vez de Tchizé dos Santos sossegar o país: o pai não estava doente, muito menos com gravidade. “Faz a sua vida normal em Barcelona — vendo televisão”. Esta explicação extraordinária levou o escritor José Eduardo Agualusa – que não pode ir a Angola – a concluir: “Podemos deduzir que a 'vida normal' de JES decorre em Barcelona. Podemos também deduzir que para ver televisão, JES se desloca até Barcelona".
É natural que Zédu vá a Barcelona para laurear a pevide; deve estar farto de ver a TV angolana, que só fala dele e do MPLA – uma medição da semana passada, mostrava que um noticiário sobre as eleições dedicou 20 minutos ao MPLA e dois minutos à UNITA, a oposição permitida. De facto, o regime angolano é daquele tipo autoritário em que são permitidos partidos fantasma, para parecer uma democracia. Nas eleições de 23 de Agosto concorrem o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), a Convergência Ampla de Salvação de Angola – Coligação Eleitoral (CASA-CE), a Aliança Patriótica Nacional (APN), o Partido de Renovação Social (PRS) e da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). Isso mesmo, até a FNLA, destruída completamente logo após a independência de 1975, renasceu como um zombie para dar uma aparência pluralista à autocracia.
Também é natural que Zédu goste de ir a Barcelona, uma bela cidade ajardinada onde se pode passear pelas ruas e parques sem medo que hostes famintas de excluídos assaltem os bem de vida. Deve estar farto de estar há tantos anos fechado num palácio de mármore e dourados.
Na difícil vida que o país teve depois da independência, José Eduardo dos Santos soube esperar pacientemente a sua oportunidade; foi fiel a Agostinho Neto, escapando da sorte dos mais de trinta mil angolanos chacinados no massacre de 27 de Maio de 1977 (morreram mais do que todos os soldados portugueses durante os 13 anos de guerra colonial). Quando Neto morreu, em 1979, manobrou habilmente para tomar o poder. Em seguida manteve uma luta sem tréguas com o único adversário que ainda tinha poder de fogo, Jonas Savimbi. Com a morte do inimigo, em 2002, pôde finalmente abandonar o marxismo-leninismo que já não lhe dava jeito e fez promulgar uma Constituição, revista em 2010, que não considera o princípio da divisão entre os poderes legislativo, executivo e judiciário, concentrando os poderes efectivos nele próprio, “El Presidente”. O documento também não prevê eleições presidenciais, mas um mecanismo pelo qual é eleito Presidente da República e chefe do Executivo o cabeça de lista, pelo círculo nacional, do partido político ou coligação de partidos políticos mais votado no quadro das eleições gerais.
Vital Moreira qualificou esta Constituição como sendo do tipo "hiperpresidencialista". Tirando a existência simbólica dos partidos, não deve ficar a dever nada à da Coreia do Norte.
Ao longo dos anos, normalizadas as relações entre a ex-colónia e o ex-colonizador, a relação entre os dois tornou-se extraordinariamente simbiótica, qualidade de que José Eduardo dos Santos se vangloria, juntamente com o facto de manter a paz interna no país. Quanto à primeira situação, permite que muitos portugueses (calcula-se que uns 200 mil) trabalhem em Angola, onde há falta permanente de mão de obra qualificada, e permite que a nomenclatura angolana invista brutalmente em Portugal, sempre ávido de capital. Esta dependência do país em relação ao regime e aos humores de Zédu justifica o horrível silêncio com que os sucessivos governos portugueses encaram o regime angolano, a sua falta de transparência, a ausência de liberdade, o atropelamento dos direitos humanos e outras desgraças.
Quando algum membro dos altos escalões de Luanda exagera, cometendo crimes à luz do direito português e é “incomodado” pelas nossas autoridades, logo Zédu dificulta a vida dos imigrantes lusos (atrasando o repatriamento de divisas, por exemplo) e logo o “Jornal de Angola” – dirigido por um “português”, José Ribeiro, vem agitar os fantasmas do racismo e neo-colonialismo. Exemplo típico da sua prosa: “Quarenta e um anos depois da independência de Angola, as elites portuguesas continuam a tratar-nos com má educação, como se ainda fôssemos seus escravos.” Outro exemplo, quando a imprensa portuguesa falou do julgamento de Luaty Beirão: “Já conhecemos as punhaladas nas costas desferidas por Lisboa e os tiques colonialistas dos jornalistas portugueses. Portugal defende o cidadão português Luaty Beirão, que se preparava para realizar atos de violência e de terrorismo muito semelhantes aos praticados em Paris, Nice, Berlim.”
Em geral, os políticos portugueses evitam hostilizar o Governo de José Eduardo dos Santos, pelos motivos apontados e também porque muitos – cada vez mais – têm negócios e interesses em Angola. Há o caso muito sui generis do PCP, que continua a defender o MPLA por ideologia, pois não reparou que o partido abandonou o marxismo-leninismo em 1992 ...
Uma notável excepção é o deputado João Soares, que publicou recentemente no Facebook o seguinte: “Noto que o que se está a passar, com o presidente de Angola, é semelhante, para pior, com o que se passou com Salazar, quando este ficou incapacitado, na sequencia de um acidente com uma cadeira (bendita cadeira, alguns dizem, oferecida pela Irmã Lúcia, pastorinha de Fátima). O que se tem estado a passar com Eduardo dos Santos é muito pior do que o que se passou com o homem de Santa Comba. Salazar esteve mais de um mês no hospital da Cruz Vermelha. Apesar da férrea censura à imprensa, havia mais de um boletim clínico diário. Sobre José Eduardo dos Santos, nada. Nem uma linha, sobre como está, e onde. Com a agravante de que é suposto haver 'eleições' em Angola, daqui a três meses. 'Eleições' no modelo de Salazar e Marcelo Caetano, aperfeiçoado. Com um 'esquema constitucional' que nenhum deles desdenharia. (...) Pessoalmente não excluo, se o senhor engenheiro estiver ou ficar balhelhas (coisa que não desejo, nem a ele, nem sobretudo aos angolanos !) que o ponham a votar, como o Salazar. Num carro que iria até à porta da secção de voto, para mostrar o espectáculo lamentável. Em 'eleições' que depois, os do costume, ou agora talvez menos uns quantos, dirão que foram muito livres e justas. Enfim uma tragédia (...) que os angolanos, mas também os portugueses, vão pagar cara.”
De facto, o que acontecer em Angola, quando José Eduardo dos Santos desaparecer, terá fortes reflexos em Portugal. Nem os angolanos nem os portugueses sabem o que será, mas têm quase a certeza de que não será nada de bom.
(Artigo corrigido às 11h08: morte de Jonas Savimbi foi em 2002 e não 1992)
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