A vertente financeira dos “royals” (como os ingleses lhes chamam, entre a veneração e o cinismo) é intrincada, e de proporções bilionárias. A complexidade vem do facto de que parte dos bens imobiliários e mobiliários pertence à Coroa, ou seja ao Estado, e outra parte é propriedade da família. Entre os bens da Coroa estão os palácios de Buckingham e Holyroodhouse (na Escócia), os castelos de Windsor e Hillsborough (no País de Gales), as jóias da coroa e incontáveis peças de arte e de mobiliário, carros e carruagens, armas e bagagens de todas as épocas, etc. etc.

A família Windsor propriamente dita tem muitas propriedades, como o castelo de Balmoral, o palácio de Sandringham, residência oficial do Duque de Gales (Carlos), Clarence House, a residência oficial dos Duques de Cambridge (William e Kate) – que saíram de lá em 2011 para Anmer Hall, nos subúrbios. Quem viveu em Clarence entre 2003 e 2011 foi o Príncipe Harry.

Está a seguir? É complicado, não é? Simplifiquemos: a Rainha, os seus sucessores directos e respectivas famílias vivem em propriedades do Estado que lhes estão “confiadas”; e depois têm as suas propriedades privadas que teoricamente pertencem a Isabel II. Circulam entre umas e outras conforme a época do ano, as obrigações institucionais e o estado de espírito. Segundo a Forbes, a senhora valia em 2011 cerca de 450 milhões de euros, entre imobiliário, objectos de arte e investimentos. Uma estimativa por baixo, certamente, pois se um palacete decente, daqueles que os bilionários russos e árabes andam a comprar em Londres, custa uns 50 milhões, como certeza que a Clarence House se venderia por uns 250 milhões.

O palácio de Kensington, que pertence à Coroa, actualmente é a residência oficial dos Duques de Cambridge (sim, eles, como outros, têm mais do que uma residência oficial), do Príncipe Harry, Princesa Eugénia de York, dos Duques de Gloucester e dos Duques de Kent.

Foi esse o nome – Kensington Palace – que a família escolheu para a entidade que trata das relações públicas e emite os comunicados que não são específicos da Rainha.

Poder-se-ia perguntar, com mais ou menos inocência, a que actividades se dedica uma família tão extensa com tantos bens e propriedades. Governar o país não é, com certeza. Desde o acordo entre o Rei Charles II (o marido da “nossa” Catarina de Bragança) e o Parlamento, em 1660, que a Coroa não tem poder. O Governo, constituído por membros do Parlamento eleitos pelo povo, governa. O Rei, reina – ou, poder-se ia dizer, de Charles II e de muitos dos seus sucessores, anda na reinação. Não pode emitir qualquer opinião pública, para lá da temperatura do chá ou do estado do tempo, sem aprovação do Governo. Mais: é o Governo que lhe diz o que deve dizer. O pomposo Discurso da Coroa, que a Rainha lê todos os anos ao Parlamento e ao mundo, é escrito pelo Primeiro-Ministro.

Ficando assim livres das maçadas da gestão pública, os reis e seus familiares dedicaram-se à missão de representar a Grã-Bretanha para o bem e para o mal. Para o bem, viajando pelos domínios britânicos, mostrando-se nas cerimónias patrióticas e vendendo o produto “Inglaterra” pelos quatro cantos da Terra. Para o mal, inspirando o patriotismo e a resiliência do povo nas guerras e conflitos.

Esta função decorreu durante séculos sem grandes problemas, e pode dizer-se que teve o seu auge no pontificado da Rainha Vitória, entre 1837 e 1901. A moral e os valores do Império estavam em boas mãos.

No século XX começaram a surgir problemas. Despontou uma opinião pública mais atenta e surgiu a imprensa dita tablóide – não se sabe qual começou primeiro ou se cresceram juntas. O facto é que a vida dos “royals” passou a ser alvo de um escrutínio diário e constante. Supostamente, os membros da família seriam exemplos vivos dos valores morais e culturais da Nação. Mas os comportamentos nem sempre foram exemplares – e lá estavam os tablóides para descobrir e explorar o mínimo deslize ou mesmo para inventar deslizes quando faltavam factos.

Seria demasiado extenso e cansativo enumerar todos os escândalos, deslizes e desastres que vários “royals” foram proporcionando ao gáudio da população, alimentada diariamente por jornais sem ponta de escrúpulos ou quaisquer padrões que não sejam chocar e, chocando, vender.

Fiquemos assim pelos maiores, que quase toda a gente ainda se lembra.

Em 1937, o Rei Eduardo VIII apaixonou-se por uma americana, ainda por cima divorciada. Wallis Simpson, que tinha chegado a Londres para refazer a vida, ainda namorou um motorista de limusine (conforme documentos da polícia abertos ao público há poucos anos), mas acabou por aterrar no coração do monarca. Foi uma história de amor, sem dúvida; mas para os ingleses um rei com simpatias nazis e casado com uma divorciada de passado nebuloso não era aceitável. Eduardo abdicou, conservando graciosamente o título de Duque de Windsor e foi viver para Paris com a sua querida. Quando a Guerra começou, sabendo os serviços ingleses que o projecto de Hitler para uma Grã-Bretanha ocupada seria a reposição de Eduardo VIII, o Governo mandou o casal para as Bahamas.

créditos: AFP PHOTO

Em 1952, Isabel tornou-se Rainha e a sua irmã, Margarida, teve a triste ideia de se apaixonar por um plebeu divorciado. É verdade que o Capitão Peter Townsend era um aviador herói da guerra, mas isso não chegava para os padrões que se esperavam de uma “royal”. Margarida desistiu do seu amor mas não perdoou e durante anos fez umas e outras, alimentado os tablóides e a má língua até à exaustão. Em desespero, a Rainha, sua irmã mais velha, acabou por aceitar um marido plebeu, mas pelo menos solteiro, Tony Armstrong-Jones, imediatamente elevado a conde. O casal dava-se mal e o conde fotógrafo era um mulherengo, conforme abundantemente descrito nos tablóides. Acabaram por se divorciar em 1972 e Margarida morreu amargurada em 2002.

O grande escândalo seguinte (estamos a saltar muitos de menor repercussão) toda a gente se lembra – aliás, parece que nunca se irá esquecer; foi a descoberta de que o Príncipe Carlos, herdeiro do trono e casado em 1981 com Diana Spencer, mantinha uma amante ainda antes de casar. Diana e a amante, Camila, eram da pequena nobreza, até aí “no problem”, os requisitos de sangue já não eram os do tempo de Margarida; mas Diana era adorada e Camila, além do estigma de enganar o marido, não brilhava, chamavam-na publicamente de bruxa, feia e má.

A popularidade de Carlos nunca foi grande coisa; gostava de emitir opiniões, e ainda por cima descabidas ou desajeitadas, sobre arquitectura, urbanismo, ecologia e outros assuntos de que obviamente não percebia muito. Com a descoberta da amante, caiu em flecha. Corria que quando a mãe o admoestou, terá respondido: “Não hei-de ficar para a História como o primeiro Príncipe de Gales que não teve uma amante.” A conversa será com certeza apócrifa; nunca Carlos falaria assim com a mãe sem levar logo um estaladão (os “royals” também se exaltam), mas a lenda urbana ficou.

“Kensington Place” entrou em alerta vermelho. Mas era impossível conter as fugas de informação. Os tablóides também estavam em modo de combate, com as vendas a subir em flecha. Apareceu uma gravação telefónica em que o herdeiro da Coroa dizia à amante, coisas que provavelmente todos os herdeiros terão dito a todas as amantes, mas que soam muito mal em público. Logo a seguir Diana, que tinha a maravilhosa qualidade de nunca cair em desgraça, arranjou um colo masculino para chorar as mágoas. Excelente comunicadora, deu uma entrevista de lágrimas nos olhos que deixou a nação estarrecida.

De um lado ficou a casa de Windsor, do outro Diana. Os comentadores da Casa Real – sim, em Inglaterra existe essa profissão, equivalente aos comentadores de futebol em Portugal – davam voltas à cabeça para justificar tanta pouca vergonha. De um lado estavam os tablóides a atiçar a opinião pública, do outro estavam os comentadores alimentados por Kensington Palace.

Caixão de Diana carregado para o interior da Abadia de Westminster, seguido de William, Harry e o príncipe Carlos.
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Quando Diana morreu num desastre de automóvel com o amante da altura, um playboy egípcio – inimaginável! – a popularidade dos “royals” chegou ao nível de se falar em República. Tony Blair, Primeiro-Ministro na altura e, ele próprio, um relações públicas de primeira classe, aconselhou a Rainha a verter uma lágrima, mas o estrago era colossal. Um dos mitos que nunca se esclareceu é se Diana estaria grávida do egípcio e que, na possibilidade impensável do filho dela, William, segundo na linha de sucessão, ser enteado dum Al Fayed, os serviços secretos ingleses procederam a uma limpeza, estilo 007.

Depois foi o escândalo com o Duque de York, segundo filho da Rainha, que se divorciou de outra burguesa, Sarah Ferguson, conhecida pelos seus cabelos de fogo e comportamento pouco “royal”. Sarah foi desterrada para a América, mas isso não era suficiente para os tablóides. Enviaram uma equipa que a armadilhou, gravando uma conversa em que prometia acesso à Casa Real a troco de dinheiro.

Parece impossível como a Monarquia resistiu a tantos escândalos, sempre com os jornais às canelas. Contudo, uma pausa nas hostilidades – mais um cessar fogo do que um tratado de paz – permitiu a Kensington House reorganizar as forças e refocar a situação. As proezas do segundo filho de Diana, Harry, sexto na sucessão, ainda alimentavam os cabeçalhos – vestido de nazi numa festa, a participar numa orgia em Las Vegas – mas nada especialmente grave para um rapazinho traumatizado pela morte da mãe e pelo pai emproado e distante.

Andrew Morton o mais reputado comentador real, até teve tempo para escrever uma longa biografia da americana que tinha enfeitiçado Eduardo VIII, e que por acaso está prestes a ser publicada.

É então que surge um novo conto de fadas para alimentar o mito da Cinderela. William, o herdeiro do herdeiro, apaixona-se e casa em 2011 com uma plebeia perfeitamente palatável, Kate. O país espera que Carlos abdique para o filho – a Rainha está com 92 anos – mas Carlos já disse que quer ser rei, nem que seja um bocadinho. Quando chegar a altura com certeza que o Governo, os especialistas de Kensington Palace, os comentadores, os tablóides e o país inteiro hão-de chegar a um consenso.

Restava Harry, o filho rebelde de cabelo vermelho e incontáveis namoradas. A sua escolha, e o facto da Rainha a ter aprovado, mostram como a “firma” (é assim que os “royals” chamam ao seu empreendimento) se soube adaptar aos tempos. Sobre ela tudo se tem escrito, não vale a pena contar mais – até porque não há mais para contar. Americana? Não é a primeira. Divorciada? Também já houve. Agora, mestiça? Grande modernidade!

créditos: EPA/FACUNDO ARRIZABALAGA

Os tablóides conseguiram logo armadilhar o pai dela, Thomas um reformado abertamente plebeu que vive no México. Não conseguiram tramar a mãe, Dora, que foi hospedeira; mas a mãe da certinha Kate, Carole Middleton, também foi hospedeira; déjà vu.

É difícil para os Markle, uma família meio disfuncional da Califórnia conformar-se com os padrões de alta nobreza britânica exigidos pela Casa de Windsor. Por mais boa vontade que tenham, não estão preparados para o campo minado da imprensa cor-de-rosa. O meio irmão já mandou uma carta ao noivo a dizer que a meia-irmã, que ele mal conhece, é “aborrecida e vaidosa”. A outra meia-irmã de Meghan, Samantha, chamou-a de “oportunista” (“social climber”) e já está a escrever um livro, “Diário da irmã metediça da Princesa”. 

Quanto a Meghan propriamente dita, não sendo tão carismática como Diana, parece boa rapariga e tem um passado aceitável para os tempos que correm. Vamos ver o que os tablóides conseguem descobrir ou, na falta, fabricar.

E assim vai a Casa de Windsor. Parece que os piores dias já passaram. A missão de representar um Império que já desapareceu mas que os britânicos querem acreditar que existe, ainda é possível. 

Kensington Palace estará sempre atenta.