A História do Líbano começa nos tempos bíblicos – era a terra dos fenícios – mas a república moderna data de 1926, quando a França, que tinha ficado com o país na divisão da península arábica fabricada pelos europeus, lhe deu a independência e uma constituição democrática parlamentar. 

Ao contrário dos outros estados formados depois da derrota dos turcos na I Guerra Mundial, o Líbano sempre foi, e continua a ser, habitado por uma grande variedade de etnias e religiões: drusos, cristãos maronitas, ortodoxos e romanos, muçulmanos shiitas e sunitas, coptas e mais umas minorias perdidas, como os arménios e os nestorianos. O idioma comum é árabe, mas a maioria fala francês e os desafogados vão estudar em França. A cidade, mais do que o interior do país, era uma mistura feliz de culturas, onde os preceitos da sharia eram tão diluidos como os dos evangelhos e ninguém se queixava.

Os libaneses tinham fama de comerciantes com gosto pela vida e os turistas apreciavam as praias mediterrânicas, os hotéis de luxo e o ambiente tão sofisticado como descontraído. Amigos meus que lá nasceram, ou por lá passaram, contam histórias de milionários árabes com namoradas russas e milionários russos com namoradas árabes, tudo muito à vontade em casinos e estâncias turísticas de sete estrelas. Quando os ricos do mundo árabe (e europeu...) queriam tirar férias dos problemas nacionais, iam para as praias de Beirute.

Ao nível político, a situação era muito mais complicada, mas resolvia-se com acordos bizantinos entre os diversos grupos, que dividiam o poder segundo um emaranhado de interesses aconchegado em muito dinheiro. Um país pobre de gente rica.

Esta paz periclitante e confortável rompeu-se na década de 1970, quando o conflito entre israelitas e palestinos transbordou para o Líbano. Em 1975, deflagrou uma guerra civil entre os grupos cristãos, apoiados não muito discretamente pelos israelitas, contra as forças da OLP (Organização de Libertação da Palestina), druzos radicais e muçulmanos. Em 1978, a OLP lançou rockets contra Israel a partir de bases libanesas, o que levou os israelitas a invadir o sul do país. Os sírios entraram na refrega e a situação só acalmou com a intervenção temporária de uma força militar das Nações Unidas – que tinha como missão não se envolver, apenas manter as partes à distância.

A partir desta época, os sírios passaram a ter uma influência nefasta na política libanesa. Por exemplo, em 2005 assassinaram o Primeiro-Ministro Rafik Hariri, e as forças da polícia política síria aplicavam abertamente os métodos dos Al-Assad. Para complicar a situação, a organização radical Hezbollah estabeleceu-se no país, tanto circulando abertamente em comboios militares (os tradicionais jeeps descapotáveis eriçados de homens armados), como elegendo deputados para o Parlamento, como ainda fazendo comícios monumentais. 

Resumindo, o Líbano passou a fazer parte do conflito israelo-árabe. Os políticos libaneses, geralmente de famílias ricas e influentes, que usam os contratos estatais para ficar ainda mais ricas e ter mais influência, ainda tentaram manter o equilíbrio precário de outros tempos, até porque a agitação é má para os negócios. Em vão. Os turistas desapareceram e a economia deteriorava-se a olhos vistos.

Mas o momento em que a ficha realmente caiu foi em 4 de Agosto, quando um depósito de nitrato de amónio no porto de Beirute explodiu, fazendo mais de duzentos mortos, milhares de feridos, e destruindo uma parte da cidade. 

Até agora, mais de um ano depois, a investigação sobre o acidente não foi feita e não há culpados, embora os políticos das diversas facções reconheçam que o desastre se ficou a dever a uma combinação de descaso e corrupção.

Entretanto, desde o final de 2019 a libra libanesa perdeu 90% do seu valor, e a inflação em 2020 foi de 84,9%. Em Junho, os preços dos produtos de consumo quadruplicaram em relação aos dois anos anteriores, segundo estatísticas governamentais, citadas pelo “The New York Times”, que faz um retrato dramático da vida em Beirute. (Quem não tem acesso ao jornal, pode consultar o artigo que publicámos esta semana.)

Segundo o Banco Mundial (BM), a crise libanesa é uma das três piores registadas no mundo desde meados do século XIX. Considerando as crises monumentais que ocorreram nesse período e o tom geralmente sóbrio do BM, não é preciso dizer mais nada.

Como é que um país que era um sonho de equilíbrio multirreligioso e multiétnico se transforma num pesadelo impossível de resolver? Maus vizinhos, com certeza. Mas culpar a vizinhança pelas disputas domésticas é fraca desculpa... A única lição pragmática que se pode tirar é que não há sistemas de estabilidade garantida, ou seja, o Fim da História é um conto de fadas.