Martin Luther King era, naquele tempo, há exatamente 50 anos, o homem mais odiado e o mais admirado na América. O assassinato fez deste pastor protestante negro um mártir na história dos EUA, homenageado em estátuas, monumentos e até um feriado nacional, a terceira segunda-feira de janeiro, celebrando o dia (15) de 1929 em que nasceu, para viver 39 anos intensos.
A vida de King apagou-se com o impacto de um tiro, mas a mensagem essencial que ele proclamou, apesar de às vezes em versão edulcorada, tem, meio século depois, a mesma atualidade: a doutrina da não violência, o respeito total pela liberdade e pelos direitos civis.
O racismo, a pobreza, o militarismo e o materialismo são males americanos que Martin Luther King combateu tenazmente. Uma ideia é pilar nos discursos de King: “A América branca tem de reconhecer que a indispensável justiça para os negros não pode ser conseguida sem mudanças radicais na sociedade”.
Quase tudo no combate de King começou em 1 de dezembro de 1955. Foi em Montgomery, no Alabama. Nesse dia, uma mulher negra, com 40 anos, sentou-se num dos bancos reservados aos brancos num autocarro das carreiras urbanas. A mulher é Rosa Parks, militante de um movimento pelos direitos dos negros. A polícia entrou no autocarro e prendeu-a. O movimento a que Rosa Parks pertencia decidiu desencadear o boicote aos autocarros de Montgomery. Havia que escolher um líder, apostaram num jovem pastor batista, então com 26 anos, Martin Luther King. O boicote foi um êxito e King tornou-se líder do movimento pelos direitos civis nos EUA.
O pastor King deixou de pronunciar sermões, passou a fazer discursos – foram 218 só em 1957. Ficou na mira principal do FBI, dirigido pelo poderoso Edgar Hoover. Descobriram em King o que apareceu como um ponto fraco num líder: era adúltero, seduzia várias mulheres. O FBI chegou a fazer divulgar gravações com intenção de comprometer Martin Luther King. A aura dele continuou intocável entre a população negra e os defensores dos direitos civis.
Um outro dia para a história é o de 28 de agosto de 1963: nessa manhã entra em Washington a “Marcha pelo emprego e pela liberdade”. A multidão junta mais de 250 mil pessoas e chega ao National Mall a cantar “We Shall Overcome”. O presidente, então Kennedy (seria assassinado três meses depois), acompanhou tudo pela televisão e comentou que, com aquele vigor, eles haveriam de, conforme a letra do cântico, conseguir vencer.
Martin Luther King é o último dos oradores nesse comício no imenso Mall de Washington. Leva um discurso escrito. Depois de concluir a leitura, diante do monumento a Lincoln, começa a improvisar. É então que diz aquele lendário “I have a dream” [Eu tenho um sonho]. Repetiu, sucessivamente “I have a dream”, antes de enunciar cada um dos objetivos memoráveis.
Clamou o sonho de que um dia os filhos de antigos escravos e os filhos de antigos donos de escravos possam “partilhar a mesma mesa em fraternidade”. O sonho de convivência igualitária entre brancos e negros. A proclamação “I have a dream” está hoje gravada em pedra no lugar onde Martin Luther King a pronunciou. O Nobel da Paz viria no ano seguinte, 64.
O discurso de Washington é o mais célebre. Tem tom de esperança, apaziguador. Há um outro discurso que desata a polémica, mesmo entre apoiantes. É pronunciado frente à igreja de Riverside, em Nova Iorque, em 4 de abril de 1967, exatamente um ano antes de ser morto. Desta vez, King não toca na questão racial nem fala de direitos civis. É um discurso contra a guerra. Começa com “Há um momento em que calar é traição”. King está a disparar oralmente sobre a mobilização militar dos EUA para a guerra que visa impedir a reunificação do Vietname sob um governo comunista.
King, neste discurso, reclama o cessar-fogo e a retirada das tropas dos EUA. Ao acusar a América de ser “o maior promotor de violência no mundo”, abriu uma brecha entre os seus.
A maioria dos conselheiros do então já Nobel King recomendou-lhe que não falasse da oposição à guerra, porque isso iria retirar força à luta que ganhava terreno contra a discriminação racial. Martin Luther King continuou a explicar que não podia calar-se porque a guerra implicava grandes perdas, sobretudo entre os mais pobres e indefesos.
Foi morto a tiro em 4 de abril de 68. A mensagem contra o racismo, a pobreza e a guerra continua com plena vigência, meio século depois.
O Lorraine Motel, de Memphis, onde Martin Luther King foi assassinado é hoje, desde 1991, o coração do Civil Rights Museum, associado ao Smithsonian Institute. Ali, através de documentos e sofisticados media interativos, é proporcionada uma viagem pela história dos negros na América, a luta pela emancipação e o papel de Martin Luther King. Obama impulsionou, em 2014, a revitalização do museu. Há quem pense que a presidência Obama, ao pretender esbater a divisão racial acabou por a inflamar. Tanto que surgiu Trump.
Nos EUA, os negros continuam a ter mais probabilidade do que os brancos de viverem em pobreza, de não terem trabalho, de serem presos ou de serem mortos a tiro. Mas o testamento de esperança e de não violência de Martin Luther King continua a pressionar a transformação da sociedade. Há duas semanas, foi uma bisneta de King a pedir, diante da multidão, também em Washington, a utopia de um “mundo sem pistolas”.
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