Mais de 800 casos de mutilação feminina em Portugal. É o que dizem os números e estes são os conhecidos, porque é certo que existem muitos outros que desconhecemos. Estes sabemos que aconteceram por terem obrigado a uma intervenção hospitalar depois do ritual feito por uma cortadora contratada para mutilar. Mutilação genital é cortar o clítoris das meninas, geralmente é feito quando estas têm cerca de nove anos de idade.

Os mais de 800 casos não são uma suspeita, são um facto que escolhemos não ver, escolhemos não pensar nisso. A mutilação genital feminina não é uma realidade em terras de África ou Ásia, senhores, é um crime que ocorre em Portugal com o à-vontade de quem invoca costumes e culturas. A mutilação genital feminina condiciona a vida de milhões de mulheres no mundo e quando me dizem que isto de ser feminista é uma chatice e um exagero, eu pergunto: a sério? Não há mais nada que queiram escolher não ver? 

A mutilação genital feminina é um crime que tem consequências para o resto da vida das mulheres que são sujeitas a este ritual. Não se explica de outra forma: esta prática sublinha a desvalorização das mulheres, a sua menorização na sociedade, a submissão ao Outro e o Outro, só para recordar, é sempre do sexo oposto e é sempre detentor de poder. As mulheres merecem menos? Em pleno século XXI as mulheres parecem continuar a merecer menos de muitas coisas: menos dignidade, menos autonomia corporal, menos poder, menos prazer. Sim, porque a prática da mutilação assume que são os homens que possuem a prerrogativa dessa coisa que pode existir no sexo: prazer. 

Limitar o corpo das mulheres é dizer que somos, nós, mulheres, menos. A mim, desculpem lá a imagem, dá-me vontade de bater, de dar com um pano encharcado na tromba de alguém. A ONU chama a atenção. Faz campanhas, trabalho de campo, todos os anos mostra com números e estatísticas a realidade de tantas meninas, de tantas mulheres. Estima-se que em Portugal existam mais de seis mil meninas e mulheres vítimas de mutilação genital. Uma seria demasiado, seis mil é absurdo. Fazem-se estudos, organizam-se conferências e publicam-se estudos. A mutilação genital feminina não é desculpável com pretextos culturais. Não há como entender uma violência deste calibre, não há argumentos. Pergunto-me como é que as mães e os pais destas meninas que são alvo do horror conseguem viver com a perpetuação deste ritual que priva as filhas de uma vida completa. Em nome de quem é que isto continua e porque será que não queremos ver nem falar sobre o assunto?