Começo já por avisar que não sou de Direito e não procuro meter-me no campo dos outros. O meu ofício está ligado às perceções e ao difundir de ideias, portanto a minha análise destes acontecimentos terá o mínimo de análise jurídica que me for humanamente possível.

E é com uma perceção importante que dou o tiro de partida. A de que toda a gente acha que faz as coisas mais importante de sempre e que vive os momentos mais importantes da História. Quem assistiu aos quase sete anos de Operação Marquês terá ficado com a ideia de que o Mundo em que vivia tinha sido uma mentira e que estava agora a experienciar uma revolução épica. Afinal, havia uma enorme cabala entre as mais altas figuras empresariais em Portugal com vista a dominar a cena política. Estava tudo confirmado, os pontos ligavam todos e tudo ia abaixo.

O primeiro a convencer-se deste papel único na História foi Carlos Alexandre, que fazia gala de ser “super-juíz” e que procurou com gosto ajudar o Ministério Público a fortalecer o seu caso.

Quase todos os que assistiam, particularmente à direita, partilharam desta vontade de ver Sócrates, o homem que tinha tido resultados eleitorais únicos na história do PS sempre com a sombra de que podia não ser a pessoa mais limpa da política, condenado por corrupção.

Carlos Alexandre quis que a culpabilidade do Primeiro-Ministro fosse de tal forma óbvia que parece ter-se esquecido de garantir que ela estava provada. Foi isso que mostrou hoje Ivo Rosa, enquanto desmontava os argumentos da acusação e desfazia a ideia do julgamento do século.

Farão muitas reflexões sobre o que é que isto diz sobre a nossa Justiça, as fragilidades dos seus segredos, a centralização estranha do seu poder decisório e a aparente rivalidade entre dois juízes que, pelo lançar de uma moeda, podem fazer com que em Portugal se cheguem a conclusões brutalmente diferentes. Deixarei isso para quem percebe do assunto.

Também para entendidos deixarei a avaliação do comportamento da imprensa, cada vez mais sensacionalista e inútil, neste processo. Desde carros em perseguição à construção de teorias da conspiração em direto, nada falhou neste espetáculo deprimente.

Mais na minha área, podia entrar por uma conversa sobre saúde da Democracia, sobre os efeitos políticos que isto pode ter, sobre quem ganha e quem perde ou sobre se o PS fez de facto uma redenção deste tipo de comportamento. Acho isso muito interessante, mas cada um podia ser um tema de tese, não para uma pequena reflexão.

Prefiro focar-me num tema que me diz muito: as elites.

Em Portugal, tal como um pouco por todo o Mundo, os Julgamentos do Século” são uma miragem construída pelos meios de comunicação social, que dizem que a casa vem abaixo quando, normalmente, quem acaba com a fava é o ator que veio do bairro ou o político que veio do interior.

As pessoas não podem continuar a sentir que a elite de sempre brinca com quem não lhe pertence e passa entre os pingos da chuva quando a coisa corre mal. Mais importante do que a saúde da Democracia será a saúde do tecido social, que só se garante se a impunidade não se comprar nem com poder nem com berço. Neste processo vimos a força de dinastias em relação aos habituais mexilhões. Não pode ser.

Ninguém que julgue este processo pode esquecer esta ideia. Está a gerir a queda de um império financeiro e mais importante, a queda do império do respeitinho. Neste julgamento, quer-se justiça, mas ela não estará apenas nas questões técnicas. Estará, como defendeu Carlos Alexandre, na ideia do combate à manha e ao truque da elite. A pôr quem nunca lá esteve entre a espada e a parede. A acabar com a reverência, que é demasiado grande para os grandes caírem.

O que o cérebro burocrático de Ivo Rosa não quer nem consegue perceber é que este também era um dia para que Portugal deixasse de ver jornalistas a chamar pelo “Senhor Engenheiro” quando ele sai do Tribunal. Enquanto Ivo Rosa lia um manual de instruções, pedia-se que tivesse o rasgo de não se cingir a ele.

Pedia-se um juiz menos quadrado, pedia-se uma visão aspiracional para parar com estas teias de interesses que andam na corda bamba entre o legal e o ilegal, usando os rendimentos do seu rentismo para pagarem os apoios jurídicos para se safarem incumprindo mais do que muitos dos que hoje dormirão nas nossas prisões.

Foi melhor do que nada, mas não foi grande coisa. O grande obstáculo ao nosso desenvolvimento, a elite estática que se legitima no estatuto, com horror à competição e que não sonha com os problemas do cidadão comum, continua de pé. Mais uma oportunidade perdida para a pôr no lugar.

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