O Sudão é aquele país que fica entre o Egipto, a Norte, e a Etiópia, a Leste, e ainda faz fronteira com a Líbia, o Chade, a República Centro-Africana, o Congo e o Uganda. Tem portos no Mar Vermelho (na rota do Canal de Suez) e é na sua capital, Cartum, que se encontram o Nilo Azul e o Nilo Branco para formarem o grande rio que é vital para o Egipto. Através do Mar Vermelho está em contacto com a Arábia Saudita. A rota do Canal tem interesse estratégico para os Estados Unidos, a China e França, os três com bases militares em Djibouti, um micro-país do golfo de Aden entalado entre a Eritreia, a Etiópia e a Somália. E a Rússia, que pretende instalar uma base naval na costa, está presente através do Grupo Wagner, que explora minas de ouro.

Pode dizer-se que este “país de ninguém” (figurativa e literalmente), nascido em 1956, é onde o Ocidente contacta o Oriente e o Golfo chega à Europa. Desde a independência, nunca conheceu uma paz duradora. As regiões do norte são islâmicas e no Darfur, a Oeste, são animistas e anti-islâmicas. Quem segue o noticiário internacional lembra-se com certeza da famigerada guerra do Darfur, na realidade um incursão das milícias governamentais, os Janjaweed, onde mataram cerca de meio milhão de pessoas e deslocaram para outros países 2,5 milhões - números incertos, evidentemente, mas que dão uma escala aos acontecimentos. Na época, entre 2000 e 2006, como ainda não existia o Califado Islâmico que se instalou em Mosul em 2014, os Janjaweed eram considerados a força mais selvagem numa região onde a reina a brutalidade: torturas, violações, fuzilamentos, abate de gado e queima de colheitas da população paupérrima e indefesa.

O governo instalado em Cartum foi teoricamente “democrático” até 1989, quando o general Omar al-Bashir fez um golpe de estado e se tornou o sétimo presidente do país e ditador de facto. Num país com 64 etnias principais, umas 500 tribos e vários credos que o islamismo não conseguiu unificar, al-Bashir impôs um regime brutal para os manter sob a tutela de Cartum, que a maioria destesta. Foi durante o seu regime que operaram os Janjaweed, mas entretanto outra região, o Sudão do Sul, conseguiu tornar-se independente em 2004. Quanto ao Darfur, com a morte de Gaddafi, que os apoiava, acabou com a rebelião em 2011.

Estão a conseguir acompanhar a narrativa? Não é fácil, e acreditem que isto é um resumo por alto, purgado das milhares histórias de terror que os sobreviventes contaram ao Tribunal Penal Internacional, em Haia, e sem detalhar as incontáveis milícias tão sinistras como os Janjaweed. 

A população de Cartum manifestava-se constantemente para a reposição dum regime democrático; finalmente, em 2019, foi derrubado pelas forças armadas, e instalou-se um governo provisório civil. E, realmente, provisório ele foi. Em 2021, o general Abdel Fattah al-Burhan, comandante do exército,  e o brigadeiro Mohamed Hamdan, comandante duma força paramilitar denominada Forças de Apoio Rápido ( (RSF,em inglês), juntaram-se e re-instalaram o poder armado.

Tinham sido os braços (direito e esquerdo...) de Omar al-Bashir, e ambos responsáveis pelos massacres no Darfur e por uma corrupção endémica que os tornou muito ricos. Al-Burhan era “inspector geral das forças armadas” e governador do Darfur entre 2003 e 2008. Quanto ao brigadeiro Mohamed Hamdan, que começou a vida profissional como vendededor de camelos, dirigiu pessoalmente os Janjaweed e subiu graças ao apoio do Grupo Wagner, que fornece o armamento do RSF. Com cerca de 70 mil homens, esta força até chegou a lutar no Yemen pelo lado da Arábia Saudita.

Como era de esperar, a associação dos dois generais não durou muito tempo; a 15 de Abril deste ano zangaram-se e as duas forças passaram imediatamente à acção. A refrega, começada em Cartum, espalhou-se pelo resto do país, principalmente em Bahri e Omdurman, dois subúrbios da capital do outra lado do Nilo. No meio da luta ficaram os civis, que não têm comida nem cuidados médicos, além de serem abatidos ao acaso quando se aventuram na rua. Segundo a Organização Mundial de Saúde, o conflito já vitimou centenas de pessoas, provocou milhares de feridos e deslocou cerca 700 mil, 160 mil para os países vizinhos.

Cada lado tem vantagens próprias. As RSF são uma força móvel de combatentes experientes, muitos dos quais estiveram na guerra no Yemen. O  exército regular é uma força convencinal, com aviões e helicópteros. 

Quanto aos civis apanhados no meio da guerra civil, segundo a Wikipédia, serão actualmente 45 milhões (não tem sido possível contá-los desde 2015), com cerca de cinco milhões na capital. 84%  pratica o Islamismo Sunita, sendo 1% Xiita. Cristãos da Igreja Copta compõem 10% da população. 3% são membros da Igreja CatólicaIgreja Protestante e Fé Baha'i. 2% não souberam explicar ou não responderam, no tal senso de 2015.

Conforme relata o  “The Economist”, “As RSF não são apenas uma milícia insurgente; tem um estatuto de contendor a nível estatal. (...) Não tem armamento pesado nem apoio aéreo, o que compensa entricheirando-se nos bairros residenciais da capital. Os combatentes violam as mulheres e obrigam-nas a cozinhar.” Além disso controlam pontos-chave da capital, incluindo o aeroporto, a maior refinaria de petróleo, o palácio precisencial e a emissora de rádio oficial.

Ainda segundo a revista, “esta guerra não é um conflito entre terceiros, como acontece na Líbia, Síria e Yemen. Mas o país tem fronteiras grandes e porosas com vizinhos também com conflitos internos, incluido a República Centro-Africana, Chade, Líbia e Sudão do Sul. Cada um destes países tem uma enorme quantidade de milícias e grupos armados e alguns podem estar à procura de beneficiar com o caos no Sudão.”

Como está sempre a acontecer nestes tempos globalizados, mesmo uma guerra civil tem implicações internacionais. Os interesses económicos são muitos e não vêm só da venda de armas. Há minérios, concessões de portos e ideias políticas em religiosas em jogo.

Enquanto este nó não se desata - e nada indica que se vá desatar a curto ou longo prazo - quem sofre é a população. E sofre com uma intensidade que nos é impossível de avaliar.