O Níger (em 26 de julho) e o Gabão (em 30 de agosto) são os dois últimos golpes militares de uma epidemia golpista no meio de África que tem repercussões locais, regionais e também globais – a Rússia e a China estão a ocupar campo que era de influência ocidental e assim a mexer com a instável geopolítica multipolar.
Tornou-se pertinente questionar: o que está a acontecer na África Ocidental e Central que leva à tomada do poder por militares, através da inédita frequência de nove golpes de estado, em sete países, nos últimos dois anos?
A onda golpista começou no lado oriental de África, no Sudão (abril de 2019), propagou-se para o Mali (dois golpes sucessivos, agosto de 2020, maio de 2021), continuou no Burkina Faso (também duplo golpe), na Guiné Conacri, no Chade, no Níger e agora no Gabão.
Em fundo a quase todos estes golpes pretorianos encontramos estados pós-coloniais fracassados com regimes entre o autoritário e o pseudo-democrático, em países onde a maior parte das pessoas vive em condições miseráveis mas os clãs governantes têm fortuna alimentada pelas riquezas naturais do território. É um enquadramento que contribui para explicar a inflamada ovação popular ao revolucionarismo autoritário e conservador dos militares sediciosos.
A tropa aparece aos olhos do povo como libertadora do poder instalado e os golpes de estado como o modo de provocar mudanças.
A par de pontos comuns, há diferenças na realidade destes países. Mali, Chade, Burkina Faso, Guiné Conacri e Níger são antigas colónias francesas onde a descolonização manteve forte poder e influência francesa. Para muito do povo, a França continuou a ditar as receitas políticas e empresas francesas tiram máximo proveito dos recursos no solo desses países.
A França, representante principal do Ocidente e armada com bases militares em vários destes países, aparece para o povo de muito desta região como país ainda ocupante e explorador. Daí a fúria popular contra os interesses franceses, incluindo as embaixadas, como se viu em agosto em Niamey, capital do Níger, e antes em Ouagadougou (Burkina Faso).
O paternalismo de Paris numa relação que cultivou a ideia de Françafrique como forma de manter uma forma de tutela, assumida como de cooperação e proteção mas também de controlo e exploração com as ex-colónias, tornou-se furiosamente rejeitado nestes países.
Muitos dos generais com uniformes camuflados que em dominó têm tomado o poder em países da África Ocidental e Central têm óbvia preferência pela Rússia e pela China, numa relação que vem do tempo da luta colonial. É fácil para esses militares promoverem essa opção junto do povo que vive em pobreza dramática e revolta contra a cleptocracia de dinastias políticas há décadas no poder – com o apoio da França.
As juventudes dessa África francófona querem acabar com práticas do passado que tem a França como potência colonial. Têm aspiração de vida melhor e optam por russos e chineses como aliados no combate contra o poder instalado e que não lhes dá esperança.
A China, com grandes investimentos financeiros está a ocupar muito do espaço económico africano. Constrói infraestruturas (incluindo hospitais e escolas) aplaudidas pelas populações e serve-se dos recursos naturais. É assim em grande parte do continente africano.
A Rússia, explora o crescente sentimento anto-ocidental na região. Os mercenários Wagner têm sido pontas de lança desta estratégia numa parceria que troca o apoio aos militares golpistas pela partilha do ouro e outros recursos nas minas, do petróleo ao urânio passando pelo manganésio.
Toda esta região central de África está sob ameaça do terrorismo jiadista que num só país, o Burkina Faso, devora pelo menos 40% do território.
A França, juntamente com os Estados Unidos, tem várias bases militares na região com forças cuja missão é a de travar esse terrorismo jiadista. Essa presença, em alguns casos integrada em missões das Nações Unidas e com o apoio da Organização de Unidade Africana está agora a ficar em causa.
A liderança de países com maior peso na região, caso da Nigéria, Senegal, Camarões e Costa do Marfim, todos integrados no conjunto de 15 países na Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) teme a propagação do contágio golpista. Perante os golpes no Burkina e no Mali ficaram pela condenação, mas o derrube no passado 26 de julho de presidente democraticamente eleito do Níger levou uma potência regional como a Nigéria a defender a mobilização de uma força militar da CEDEAO para intervir no Níger, derrubar os golpistas e repor no poder o presidente deposto.
Há tropas da CEDEAO mobilizadas para a intervenção a qualquer momento, mas alguns dos 15 países desta comunidade, entre eles Cabo Verde, travam essa escalada militar com consequências imprevisíveis. O presidente José Maria Neves, de Cabo Verde, lidera o grupo de líderes africanos que defende soluções negociadas com a diplomacia na primeira linha. É tido em conta o apoio popular nas ruas e no estádio de Niamey aos golpistas do Níger.
O golpe consumado na passada quarta-feira no país de imensa e rica floresta tropical que é o Gabão escapa a esta mutação de zonas de influência e inscreve-se mais no catálogo de golpes de estado dos anos 70 e 80 do século 20. Esta golpe no Gabão pôs fim a 56 anos de governo do país por uma única família, os Bongo, primeiro o pai Omar (empossado em 1967, com patrocínio francês), depois, até à última quarta-feira, o filho Ali que iniciava terceiro mandato. A população gabonesa há muito mostrava exaustão e revolta contra a cleptocracia dos Bongo num país muito rico em matérias-primas como o petróleo e o urânio mas sem qualquer benefício ara a população, paupérrima e sempre à procura de modos para migrar.
O regime dos Bongo tinha-se tornado insustentável. Este golpe no Gabão não é surpresa e não há sinais de que os militares que tomaram o “poder de transição” estejam alinhados com a influência russa para uma operação anti-ocidental.
É assim que as atenções sobre a região estão focadas sobre o Níger, país de 27 milhões de pessoas, que tem o Chade e a Líbia entre os vizinhos. Os EUA têm no Níger uma das suas principais bases de drones em África. Os franceses têm no Níger a sua maior base aérea em África. O facto de a China, no Conselho de Segurança da ONU, ter condenado este golpe militar e a deposição do presidente democraticamente eleito é um dado relevante.
Uma das questões sob observação é a de saber de que modo vai Putin lidar com esta região, após a liquidação do fundador do grupo de mercenários Wagner, que foi punho de ferro do Kremlin em todo esta metade norte de África.
Está em causa uma vasta região que vai do Sará às florestas tropicais africanas, é uma zona infestada pelo terrorismo jiadista, território em estado de alarme também pelos efeitos das alterações climáticas e uma fonte e rota de trânsito de intensos movimentos migratórios.
Comentários