O corpo trai-nos porque pode, porque é necessário e nós, armados em super heróis sem capa ou espada, super poderes estranhos ou assentes na tecnologia, escolhemos ignorar. Diria que ignoramos com facilidade muita coisa, até por não termos como nos concentrar em tudo aquilo que afecta a nossa existência.

“Tenho a vacina do tétano em atraso. Não faz mal, já tenho há anos”, disse-me há uns meses uma senhora a fazer 50 anos, mulher inteligente e informada. Não receia que alguma coisa aconteça porque os males que nos habitam são pequenos e não vai, diz ela, enfiar um ferro no braço correndo riscos desnecessários. Não vai espetar um ferro no braço? Pois, eu também não tenciono que algo do género me calhe em sorte, mas caramba, existem acidentes e eu acredito na vacinação. A mesma senhora sorri e explica-me que não pode antever acidentes: “o que seria a vida se estivesse sempre a fazer filmes relativos ao que pode acontecer? A levantar hipóteses?” Assim se conclui que estou perante uma optimista e ainda bem, o mundo precisa muito de optimismo.

Ora, se não podemos congeminar constantemente sobre as infinitas possibilidades de malefícios que nos podem tomar de assalto, por ser depressivo e pouco adiantar, também não podemos ignorar que viver a vida ao sabor da maré pode ser um erro crasso já que existem inúmeras situações que podemos evitar se pensarmos nelas. Com isto em mente, e sabendo que estamos todos a morrer assim que nascemos, é uma como doença progressiva, continuamos a ficar espantados com a traição do corpo e com as declarações de médicos e cientistas que asseguram que vamos ter mais cancros, que vamos sofrer de mais doenças neurológicas e mesmo as coisas virais desconhecidas estão aí ao virar da esquina com o degelo e o aquecimento global.

Não tomamos nota dos sinais, não respiramos como deve ser, já nem mastigamos, engolimos, e para um pensamento elaborado é quase preciso um ambiente asséptico de laboratório tal é a necessidade de ausência de estímulos. A senhora com quem conversei há dias foi informada esta semana de que tem um cancro na mama. A primeira reacção foi de espanto, depois de tristeza, e começou a fazer listas de prioridades: comer melhor, experimentar meditação, estar com os amigos (não nas redes sociais mas ao vivo e a cores) e ler os clássicos da Literatura que nunca leu. Ouvi com atenção e manifestei a minha solidariedade. Não fui capaz de lhe dizer que vai passar. A facilidade com que se relativizam as coisas com essa frase infame – vai passar – é quase obscena. Não perguntei se fazia o rastreio do cancro da mama todos os anos. Tive medo da resposta, do embaraço que iria, eventualmente, provocar. Liguei para o hospital e marquei o meu exame.