Este texto faz parte da rubrica Regresso a um Mundo Novo, em parceria com a plataforma 100 Oportunidades, em que vários jovens nos ajudam a pensar o mundo pós-pandemia.


Não acredito que o futuro se encontre definido e estagnado, à espera de ser decifrado. Enquanto o pensamos, discutimos e escrevemos sobre ele, as nossas ações e decisões, passo a passo, momento a momento, moldam-no definitivamente, como cada laçada numa malha de tricot. No entanto, o futuro é indissociável do comportamento humano, que tem sido amplamente estudado e o qual nos poderá oferecer alguma clareza e previsibilidade perante o que aí vem. E se, através dos últimos 70 000 anos de sobrevivência e evolução da nossa espécie pudéssemos encontrar indicações para navegar algumas das incertezas do futuro?

Nós, homo sapiens, não fomos desde sempre a espécie mais forte. Como descreve o historiador Yuval Noah Harari, “há 70 000 anos, os nossos antepassados eram animais insignificantes no reino animal e no planeta”. Desde então, dois fatores interligados contribuíram para que tudo mudasse, diferenciando-nos de todas as outras espécies no planeta e elevando a nossa posição ao topo da hierarquia animal: comunicação e adaptação. O desenvolvimento de um sistema de linguagem crescentemente complexo alterou, profundamente, a nossa capacidade de pensar, aprender, comunicar e colaborar.

Dotados de uma linguagem que nos permitiu comunicar e colaborar a um nível sem precedentes, e equipados com uma rápida capacidade de aprendizagem e adaptação, os homo sapiens, sobreviveram, cresceram e triunfaram desde então. Um humano seria facilmente derrotado por 1 gorila. Contra 10 gorilas, 10 humanos teriam o mesmo desfecho. Mas, 1000 gorilas não teriam qualquer hipótese contra 1000 humanos; com a nossa capacidade para pensar, comunicar e acordar num plano de ação, colaborando e articulando os nossos esforços, nós homo sapiens, somos praticamente invencíveis.

Há 70 000 anos vivíamos em pequenos grupos nómadas de 5 a 10 elementos, evoluindo para pequenas comunidades de 100 a 150 pessoas, até às cidades com milhares e posteriormente às grandes metrópoles com milhões de habitantes. Hoje, com a globalização e um conjunto imenso de soluções tecnológicas, ultrapassamos essas fronteiras. Gradualmente, milénio a milénio, século a século, fomos percebendo que sobrevivemos melhor juntos, em interdependência, com diferentes homo sapiens a especializarem-se na resposta a diferentes necessidades.

Contrariamente aos receios de que perante um cenário de crise, como o período em que atualmente vivemos, possa haver uma tendência para um maior individualismo, a evidência científica (e a nossa breve experiência até ao momento) mostram-nos o contrário; em situações de emergência, o homo sapiens, na sua maioria, age instintivamente de forma pró-social, procurando ajudar e colaborar, porque 70 000 anos de sobrevivência bem-sucedida ensinaram-nos que esta é a melhor estratégia para vencermos qualquer ameaça.

Pensemos por um instante numa das métricas de sucesso de tantos projetos e organizações: resolver adequadamente uma necessidade existente ou dar uma solução mais eficaz a um problema instalado. Tipicamente, quanto maior for o valor que acrescenta a outros humanos, maior o crescimento desse mesmo projeto ou organização. Em altura de pandemia, milhares de pessoas multiplicam-se nos seus esforços para ajudar: seja na linha da frente como muitos profissionais de saúde, seja na investigação na procura por uma solução definitiva para a Covid-19, seja no fabrico de materiais de proteção ou angariação de fundos, entre outros.

"Precisamos de ver na ciência, que nos coloca hoje na melhor posição de sempre para fazer face a esta ameaça, a nossa linguagem universal."

Estamos profundamente programados para funcionar desta forma, em interdependência e colaboração. Comportamentos que contribuam para o bem comum, especialmente quando valorizado por outros, ativam os sistemas de recompensa no cérebro, alterando os nossos níveis de serotonina, oxitocina e dopamina, fazendo-nos sentir orgulhosos e satisfeitos, e convidando-nos a repetir esse mesmo comportamento. Em oposição, sofremos quando nos é negada uma necessidade importante; basta pensarmos como podem ser desconfortáveis sensações de fome, sede e sono. Podemos também pensar na angústia e desassossego de estarmos fisicamente afastados das pessoas importantes da nossa vida por períodos extensos de tempo.

Que mundo novo poderá ser este pós-confinamento?

Este mundo novo trará desafios específicos à nossa capacidade de adaptação: como o desgaste emocional dos profissionais de saúde, as dificuldades dos professores na adaptação a novas formas de lecionar, alterações na empregabilidade e no estilo de vida, o luto decorrente de todos os que perdem um ente querido e iniciam esse processo duro e difícil. No entanto, recordo que estamos programados para nos adaptarmos. E com essa adaptação, observaremos também a um crescendo de dimensões como a resiliência, a solidariedade, e a gratidão.

Globalmente, este mundo novo dependerá também do posicionamento dos diferentes países, com um risco acrescido nos que seguem uma estratégia de isolamento nacionalista, focando-se apenas nas suas necessidades, em detrimento de uma perspetiva de solidariedade global, permitindo a formação de uma rede de entreajuda internacional. Gostava de entrar neste mundo novo com a convicção de que todos vencemos a Covid-19. Para isso, precisamos de comunicar, colaborar e articular uma estratégia comum; precisamos de ver na ciência, que nos coloca hoje na melhor posição de sempre para fazer face a esta ameaça, a nossa linguagem universal.

Não temos controlo sobre muitas variáveis, mas como disse Viktor Frankl, no seu livro Man’s Search for Meaning, “tudo poderá ser retirado a uma pessoa, exceto uma coisa: a última das liberdades – a de escolher a sua atitude perante qualquer tipo de circunstâncias”. Temos esse último poder. E para nos ajudar nos momentos mais difíceis, a nossa mente dá-nos dois outros poderes: o de visitar o passado, através da nossa memória, e o de explorar o futuro, através da nossa imaginação.

*O Celso Sousa Costa escreve segundo o novo acordo ortográfico