Possível é, com certeza. O engenho humano, que já inventou coisas tão complexas como o telemóvel ou a bicicleta, não tem dificuldade em congeminar formas de consumir sem destruir. Se vale a pena, no sentido da satisfação pessoal, é evidente; no sentido da sobrevivência da vida no planeta, isso já depende de mudanças colectivas de atitude. Primeiro, é preciso tomar consciência do que tem sido a presença humana na Terra e da interdependência duma com a outra.
A primeira coisa é entender que o progresso, essa promessa de uma vida mais confortável e satisfatória, trouxe consigo uma complexidade que não para de crescer e que, em última análise, tornou-se uma ameaça de extinção da espécie.
Esta verdade pode ser observada a muitos níveis, desde a alimentação diária ao consumo de energia, passando pela roupa que nos veste e pelo espaço que ocupamos. Os recursos do planeta são elásticos, porém finitos, e o crescimento da espécie em números e necessidades está a chegar a níveis incomportáveis pelos ecossistemas. As provas desta catástrofe pendente são tão evidentes que já não é possível escondê-las. A questão é que se criaram necessidades e é muito difícil abandonar benefícios adquiridos.
Nas casas construídas há cinquenta anos havia uma lâmpada no tecto e uma tomada de corrente eléctrica em cada compartimento, inclusive a cozinha, e excluindo a casa de banho, onde não havia tomadas. Era suficiente para as necessidades vitais de uma família. Actualmente, essa mesma família precisa de dezenas de tomadas eléctricas na sua casa, fora os cabos especializados que transportam energia sob a forma de informação. Claro que, à escala mundial, esta realidade varia muito; mas a tendência é para que cada vez mais pessoas tenham acesso ao consumo que agora só uma parte tem, o que multiplica a utilização e o esgotamento dos recursos naturais. Algumas estatísticas são aterradoras. Por exemplo, se todos os chineses tivessem o nível de consumo dos europeus, situação que eles certamente ambicionam, têm o direito de ambicionar e estão a trabalhar para isso, os recursos naturais no planeta esgotar-se-iam imediatamente – mesmo baixando o consumo dos europeus e americanos do norte (E.U.A. e Canadá) para níveis inferiores.
A um nível global, é muito difícil chegar a um acordo, pelos motivos óbvios; os países onde falta querem subir o seu nível de consumo, enquanto os países do excesso têm dificuldade em reduzir o seu. A Suécia, onde a electricidade é abundante, pode dar-se ao luxo de procurar energia mais sustentável, mas a Indonésia, que têm carências nesta área, não pode desligar as suas centrais de queima de energia fóssil enquanto estuda a possibilidade de parques solares.
Ao nível industrial e nacional têm-se verificado alguns passos num sentido positivo. É o caso, por exemplo, da BMW, que tem um programa para que 100% dos seus carros seja reciclável, ou da Associação Americana de Reciclagem (ARA) que já recupera 96% das baterias usadas. Ou ainda o governo francês, que acaba de proibir o fabrico de talheres e copos de plástico. Ou países com a Islândia, Noruega o Butão ou Moçambique, que estão nos 100% de energia renovável.
Na Suécia existe um movimento, patrocinado pelo Estado através de campanhas e subsídios, para que os objectos sejam reparados em vez de substituídos – concretamente, sapatos, roupa, electrodomésticos e bicicletas. Na verdade, quase tudo pode ser consertado. É a volta do sapateiro, da costureira, do electricista especializado e de outras profissões, com vantagens não só económicas mas também no mercado de trabalho.
Em vários países europeus já há partidos, e não são só os “verdes” a propor políticas mais favoráveis ao ambiente. É o caso de Jean-Luc Mélenchon, em França, que tem alertado para os hábitos de consumo excessivos e para a diversificação da produção europeia.
Se estas tentativas e muitas outras serão suficientes, só o futuro dirá. Mas entretanto há muitas pessoas como o João e a Antónia, que decidiram começar por elas próprias, escolhendo um tipo de vida concentrado nas necessidades básicas, supridas por fontes não poluentes ou renováveis. Em números globais não é ainda um movimento significativo, mas tem vindo a crescer geometricamente.
João e Antónia não são vegetarianos, e muito menos veganos. Gostam de tomar banhos quentes e viver numa casa fresca. Tudo isto é possível, dentro do razoável, ou seja, sem desperdícios nem gastos inúteis. Também acham que devem participar nas decisões da comunidade e manifestar-se a favor das suas ideias. Por exemplo, votam e vão a Lisboa – de comboio – para participar em manifestações. Escrevem nas redes sociais as suas opiniões.
Quantas famílias em Portugal terão tomado decisões semelhantes a João e Antónia? Não há estatísticas, evidentemente, mas começa-se a ouvir falar de mais casos, cada vez mais casos. Trata-se de pessoas bem informadas e conscientes, não de românticos utópicos.
As utopias não ajudam a causa do retorno à simplicidade.
É o caso, por exemplo, de uma recente manifestação “para o fim dos matadouros”. Os matadouros foram um grande avanço sanitário do século XIX, pois acabaram com os abates domésticos ou comerciais em condições de higiene deploráveis. As pessoas não vão deixar de consumir animais – o Homem começou por comer carne antes de vegetais, que só se tornaram viáveis com a sedentarização. E a produção industrial, que tem um aspecto tão horrível nos vídeos, com aqueles frangos todos pendurados por uma perna a ser degolados, é indispensável para alimentar tanta gente. Não é possível produzir carne para 7.500 milhões de pessoas sem ser numa escala industrial. É possível reduzir o consumo e tratar os animais de uma forma mais compassiva, mas não deixar de os comer...
Voltando ao João e à Antónia: a escolha da simplicidade é uma opção de viver uma vida mais simples, mas nem todas as famílias têm feitio para viver no campo ou numa pequena aldeia; há o cinema, o teatro, as exposições, as saídas nocturnas, os restaurantes, as mil e uma actividades culturais, recreativas ou deliciosamente inúteis que formam uma vida urbana. Haverá sempre cidades, locais onde não se podem plantar as próprias couves ou aquecer a água com luz solar. Mas pode-se eliminar a compra de objectos inúteis que parecem úteis só porque alguém os inventou – um separador de gemas de ovo? uma capa de telemóvel? Um arquivador de DVDs – pode-se consertar muita coisa que tem recuperação – e a roupa vem logo à cabeça – e não é preciso ter seis relógios para ver as horas.
A simplicidade é o luxo do futuro.
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