Fiquei muito admirado: aquelas pessoas estavam a falar do quê? Eu tinha ficado umas boas duas horas longe do Facebook… O mundo tinha mudado. Havia, pelos vistos, um excesso de trocadilhos com o número 31!

O que se passava, por amor de Deus?

O número do crime

Devagar, puxando o mural do Facebook um pouco mais para baixo — e, confesso, acedendo ao SAPO24 para ver as notícias do dia — lá percebi: José Sócrates tinha sido acusado de 31 crimes. Vai daí, várias dezenas de pessoas (ou terão sido centenas?) começaram a fazer trocadilhos do género «está metido num 31». E uns 31 segundos depois — ou talvez menos — havia já dezenas ou centenas de pessoas aborrecidas por terem visto aquele trocadilho mais vezes do que a conta.

Ou seja, eu comecei pelo fim de toda esta sequência de notícias, comentários jocosos, comentários irritados, discussões mais ou menos acesas sobre os comentários jocosos e os comentários irritados. E só estive duas horas sem rede!

Como pegar fogo a um homem numa estação de serviço

Uma pessoa fica zonza a olhar para estas sequências. É tudo rapidíssimo. Uma polémica na imprensa de há umas décadas demorava semanas. Agora, arde tudo num fósforo. Não acho mal, à partida — mas há perigos nisto tudo que vão muito para lá da minha atrapalhação ao ver irritações sem perceber a causa.

Vou pedir ao leitor que imagine um cenário: um homem dos seus quarenta anos vem a descer a A1 num dia qualquer de julho deste ano. Chamemos-lhe Paulo.

O Paulo decide parar numa estação de serviço. Para o caso, serve a estação de Aveiras. Entra no restaurante self-service e põe-se na fila. Enquanto espera, entretém-se no Facebook. Entretanto, chega um grupo de três bombeiras e dois bombeiros com ar cansado, sujos do combate aos incêndios deste verão terrível. O grupo põe-se também na bicha, atrás do homem.

Uma rapariga — chamemos-lhe Rita — está sentada à mesa e repara na cena: o Paulo olha para o telemóvel, enquanto, atrás, bombeiros esperam sem que o malandro se lembre de lhes dar o lugar, o que será o mínimo, tendo em conta o sacrifício que aqueles jovens bombeiros faziam pelo país.

A Rita publica de imediato a fotografia dum homem entretido no telemóvel e cinco bombeiros sujos e cansados. Por baixo, um comentário a condizer: «A falta de civismo dos dias de hoje! Enquanto uns se arriscam para salvar as vidas dos outros, outros nem levantam a cabeça do telemóvel!»

Enfim, os pontos de exclamação seriam certamente muitos mais e imagino um festival de maiúsculas em cada frase.

Não será muito relevante, mas o Paulo imaginário acaba por levantar os olhos do telemóvel e convida então os bombeiros a passar à frente. Parecem, de facto, muito cansados.

Quando a vida muda na fila do self-service

A imagem que a Rita partilhou torna-se viral em poucos minutos. É daquelas fotografias irresistíveis por aqueles dias: junta a indignação aparentemente justa à homenagem a quem a merece. Tudo isto é bem condimentado com o horror que os incêndios provocaram e ainda a confirmação daquilo que parece óbvio: o mundo está obcecado com os telemóveis e as pessoas de hoje em dia já nem sabem ceder um simples lugar numa fila aos heroicos bombeiros. Vivemos num mundo de gente má, não é verdade?

São centenas de partilhas, milhares de comentários, insultos em barda. O Paulo, minutos depois, descansado a comer, começa a receber mensagens dos amigos e insultos de desconhecidos — e descobre que é o vilão do dia nas redes sociais. Nas redes sociais e não só: há jornais que publicam a fotografia e há um programa de humor na televisão que se aproveita do instante para fazer uma piada certeira (isto, claro, três dias depois).

Se quisermos ser um pouco mais dramáticos, podemos até imaginar discussões domésticas, a perda do emprego, a vergonha durante meses e meses, muito depois de o caso desaparecer da mente das gentes.

Estou a exagerar? Julgo que já por aqui recomendei o livro So You’ve Been Publicy Shamed de Jon Ronson. O livro mostra como o cenário que criei acima só peca por ser muito meiguinho para com as personagens. Optei por inventar a história porque falar das histórias reais pode ser mais um prego na pele das vítimas destes fogos virtuais.

Somos todos carrascos

Pergunto ao leitor: se visse a fotografia que imaginei acima, será que a partilhava? Será que comentava? Será que pensava duas vezes e chegava à conclusão que um instante apanhado num telemóvel não significa nada sobre a falta de civismo dos portugueses e muito menos sobre aquela pessoa em particular? Uma partilha não faz mal a ninguém, pois não? Em caso de dúvida, mais vale partilhar...

O problema não é cada partilha ou cada insulto: o problema é a quantidade e a velocidade a que tudo decorre. Em poucas horas, a pessoa envolvida sente-se humilhada e diminuída perante o peso da censura social. O mesmo grau de atenção e a mesma luz dos holofotes que antes eram reservados aos famosos (que terão os seus mecanismos de defesa e algumas vantagens para compensar) podem agora incidir num qualquer anónimo apanhado num instante comprometedor ou ambíguo. E é tudo tão aleatório: não há um pingo de justiça nisto, apenas a força do acaso, como um piano que cai em cima dum pobre transeunte (a olhar para o telemóvel, pois então).

A nossa força coletiva nas redes sociais é imensa — e, se às vezes gastamos essa força em discussões interessantes ou a avaliar a qualidade dos trocadilhos dos outros, há dias em que atropelamos gente inocente. É o equivalente virtual daqueles casos em que pessoas morrem debaixo dos pés duma multidão em fúria: há mesmo quem fique ferido debaixo dos nossos cliques.

(A sério: leiam o livro de Jon Ronson. Por incrível que pareça, é divertido — e muito importante.)

Marco Neves é tradutor e professor, autor do livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e do romance de aventuras A Baleia Que Engoliu Um Espanhol. Escreve no blogue Certas Palavras.

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