No dia 6 de Janeiro de 2021, um grupo de milhares de pessoas – todos brancos, na grande maioria homens – instigados pelo presidente perdedor, Donald Trump, atacaram o edifício do Capitólio com a intenção de interromper e invalidar a confirmação da vitória de Joe Biden. Nas cenas inacreditáveis que duraram várias horas morreram sete pessoas, incluindo três agentes de polícia.

Os incitamentos de Trump à rebelião começaram muito antes. Ainda as eleições não tinham ocorrido, já falava que os resultados seriam falsos, manipulados pelos democratas. Depois dos resultados conhecidos, no período entre a validação dos estados e a confirmação final numa sessão conjunta da Câmara dos Representantes e do Senado, não se cansou de repetir que tinha havido aldrabices. Ele e os seus mais próximos, tanto na Casa Branca como contratados especialmente (Ruddy Juliani e outros), moveram processos a contestar os resultados em todos os Estados onde tinham perdido – e não conseguiram uma única prova de irregularidades. Mesmo assim, continuaram a insistir na mentira – “The Big Lie” – ao mesmo tempo que atiçavam os grupos nacionalistas locais para que ameaçassem fisicamente as famílias dos responsáveis estatais pelas contagens. E começaram a preparar os radicais para uma acção física mais violenta.

Finalmente, no próprio dia 6, quando milhares de pessoas de todo o país vieram para Washington, dispostas a tudo, Trump recebeu-os a pouca distância do Capitólio, com um discurso em que os incitou a “defender o país”, impedindo a confirmação oficial a ser feita pelo vice-Presidente, Mike Pence. Telefonou a Pence, incitando-o a “ter coragem para fazer a coisa certa” – o que o seu vice recusou. Houve telefonemas a McCarthy, o líder republicano no Senado, e a outros congressistas, convencendo-os a invalidar os resultados. Tudo isto assistido em tempo real pelas televisões e o país inteiro. (Os telefonemas foram confirmados pelos próprios, logo a seguir, antes de mudarem de ideias...)

Durante os tumultos, em que os congressistas foram obrigados a esconder-se nos recônditos do edifício, enquanto os revoltosos, folcloricamente vestidos, pavoneavam bandeiras sulistas pelas salas, invadiam os escritórios e se sentavam nas cadeiras parlamentares, Trump ficou a assistir pela televisão. Durante três horas, recusou-se a chamar reforços da Guarda Nacional. A polícia do Capitólio, uma força pequena e treinada apenas para orientar a rotina da casa, não tinha nem armas nem forças para impedir a avalanche. Ao fim de longas horas, em que os congressistas viram as suas vidas em perigo, por fim o Presidente chamou a Guarda – que só chegaria horas mais tarde – e disse aos seus sequazes para irem para casa, despedindo-se com um “I love you”.

É preciso lembrar que esta é a segunda vez que o Capitólio é invadido, desde que os Estados Unidos se declararam independentes, em 1776. A primeira foi em 1812, quando as tropas inglesas ocuparam Washington e queimaram o edifício, durante a Guerra da Independência. Esta é a segunda, perpetrada por americanos. Não há como minimizar o valor simbólico do Capitólio, tão “sagrado” como a Constituição – a primeira dos tempos modernos e a mais longa em vigência. Para lá das especificidades do acontecimento, foi um momento em que os princípios que formaram o país estiveram realmente a perigo.

Até hoje, Trump nunca reconheceu a derrota. Pela primeira vez na História do país, um presidente cessante não esteve na tomada de posse do sucessor, não o recebeu na Casa Branca e não facilitou a transição entre as equipas presidenciais. Situações frequentes em muitos países deste mundo (em inúmeros casos incentivada pelos interesses norte-americanos, diga-se...), mas impensável na “terra dos homens livres”, que vende e impõe democracia nos quatro cantos da Terra.

Intra-muros as protecções democráticas começaram em 1870, ano em que o Congresso criou o Ministério da Justiça para proteger os direitos civis, e as emendas 13, 14 e 15 deram especificamente o direito de voto a todos os cidadãos, ou seja, brancos, negros ou de qualquer outra etnia. Em 1965, a Lei dos Direitos Eleitorais deu a esse ministério os meios necessários para universalizar o voto, ultrapassando os Estados. Mas, em 2013, o Supremo Tribunal “esvaziou” a Lei, e imediatamente os Estados mais conservadores começaram a restringir o direito de votar. Para começar, cada um dos 50 estados que compõe a federação tem regras eleitorais próprias. Para concluir, é preciso o cidadão registar-se, e esse registo por vezes exige documentação propositadamente complicada para excluir os pobres e as minorias. Além disso, o voto pode ser presencial, à boca da urna, antecipado e/ou enviado pelo correio. Neste último caso a pessoa tem de receber em casa o boletim e a carta de retorno. Finalmente, os círculos eleitorais não correspondem às divisões administrativas (equivalentes a freguesia, conselho e distrito) e podem ser redesenhados pelas câmaras legislativas estatais conforme os interesses do partido maioritário na altura. Resumindo, para votar não basta ser cidadão; é preciso querer muito e saber como.

Inicialmente, os republicanos repudiaram o ataque, mas poucos dias depois, passado o susto, já o estavam a minimizar. A título de exemplo, o congressista Andrew Clyde, da Georgia, no dia 6 foi um dos que ajudou a barricar uma porta e depois fugiu. Uma fotografia mostra-o apavorado, a boca aberta e a os braços a gesticular, atrás de um segurança de pistola na mão. Mas poucos meses depois declarou:

“Quando observei os vídeos daqueles que entraram no Capitólio e andaram pelo Salão Nobre, vi pessoas pacatas paradas atrás dos cordões de segurança, a fazer vídeos e a tirar fotografias. Se não soubéssemos que as imagens que observei eram do dia 6 de Janeiro, pensaríamos que se tratava de uma visita turística normal.”

Parece impossível, mas é verdade. Um ano depois, nenhum dos republicanos das duas casas do Congresso é capaz de reconhecer aquilo por que passou. Não surpreende que essa ideia de uma outra realidade tenha transbordado para o seu eleitorado. Segundo uma sondagem feita em 2 de Janeiro pela ABC metade dos eleitores republicanos acham que os insurgentes atacaram o Capitólio para “proteger a democracia” e que a ideia de que foi um episódio particularmente violento só pode ser uma balela da comunicação social liberal.

Esta sexta-feira, o Ministro da Justiça (Attorney General), Merrick Garland, assegurou que o Ministério Publico ainda só acusou alguns insurrectos, mas sabe que houve quem os instigasse. Explicou que a investigação começa pelos “soldados”, que são casos mais fáceis, enquanto o ministério estabelece uma cronologia dos acontecimentos e recolhe provas. Acrescentou que serão acusadas pessoas de todos os níveis, quer estivessem presentes naquele dia, quer possam ser responsabilizados indirectamente pela organização do assalto. O ministério já emitiu mais de cinco mil mandados de detenção e de busca, recolheu mais de dois mil “objectos”, analisou para cima de vinte mil horas de vídeo e pesquisou cerca de 15 terabytes de dados. Até agora foram acusados e detidos mais de 725 suspeitos e alguns condenados a penas de prisão efectiva.

Barbara Walter, uma politóloga da Universidade de São Diego, na California, acaba de publicar um livro cujo nome diz tudo: Como começam as guerras civis”. Segundo ela, a América está à beira de uma: “Os países ficam mais vulneráveis a uma guerra civil quando se encontram algures entre a ditadura e a democracia. Numa democracia funcional, as pessoas não têm razão para se revoltar. Numa ditadura, o mais certo é que sejam presas ou mortas se o fizerem. A zona perigosa surge quando um regime dá lugar a outro, mas o novo ainda não se consolidou. (...) Entre uma democracia e uma ditadura, a maioria prefere a democracia; mas o percurso democrático torna-se perigoso.”

O co-autor do livro Como morrem as democracias, Steven Levitsky, afirma que “não há nenhuma democracia ocidental que neste momento esteja mais em perigo.”

Na sexta-feira, todos os órgãos de comunicação social americanos, escrita e televisiva, tentaram explicar esta situação. Todos concordam que existem de facto duas visões do país que o dividem de alto a baixo – isto é, dos políticos mais importantes aos cidadãos mais obscuros – e que vão continuar incompatíveis.

As eleições intercalares (para uma parte do Congresso) decorrem já este ano. As perspectivas democráticas não são nada boas. Por um lado, é tradicional que o partido na Casa Branca perca as intercalares; por outro, os democratas não estão a conseguir penetrar no mundo paralelo daqueles que continuam a acreditar que a eleição de 2020 foi fraudulenta.

Trump certamente será concorrente às próximas presidenciais. Até lá, a Comissão Parlamentar que esmiúça os acontecimentos de 6 de Janeiro de 2021 provavelmente descobrirá que toda a gente a volta dele esteve implicada na preparação do ataque, para não falar da evidência que já temos de que ele o incentivou abertamente. Mas, quaisquer que sejam as conclusões da Comissão, isso não mudará a opinião dos eleitores trumpianos.

O que os democratas têm de fazer é mudar as leis eleitorais, impedindo os Estados republicanos de as manipularem a seu favor. Para isso têm de acabar com a tradição do “filibuster” no Senado, uma norma não escrita que exige uma maioria de 60% para aprovar certas leis. Até agora têm hesitado, porque se pode virar contra eles num futuro.

E o que os democratas têm de escolher é quem enfrentará Donald Trump em 2024. Biden estará velho demais e desgastado; Kamala Harris, a vice, não é muito popular e mesmo os democratas acham que tem feito pouco. Se não mudarem as leis eleitorais e se não arranjarem um candidato de jeito (seja lá o que isso possa ser), Trump tem grandes hipóteses de ganhar. Xi Ji-ping e Putin não podiam desejar mais.

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